A Intimação
para a protecção dos direitos, liberdades e garantias
A busca por um
mecanismo processual específico de tutela dos direitos, liberdades e garantias
encontra as suas raízes no quadro da Constituição da República Portuguesa
(doravante “CRP”). Mais precisamente, esta necessidade resulta do aditamento do
nº5 ao art.20º da CRP, bem como, da ausência de um meio processual específico
de queixa constitucional que se concretize na tutela efectiva de direitos
fundamentais.
· Contextualização
A instituição
da figura processual da “Intimação” no ordenamento jurídico português é o
resultado de um longo processo de maturação e debate legislativo e doutrinal
que tem como pretexto o antigo desejo de se instituir um recurso de amparo no
nosso ordenamento. Remontando às revisões constitucionais de 1989 e 1997, em
que nos deparamos com a tentativa falhada de introdução do recurso de amparo
por falta de maioria de aprovação, procurou-se introduzir uma acção
constitucional que promovesse a defesa contra acções ou omissões dos poderes
públicos que infringissem direitos, liberdades e garantias, bem como, a criação
de um instituto de recurso constitucional de defesa contra decisões
jurisdicionais que atentassem contra tais direitos.
ALVES CORREIA
ajuda-nos a perceber as dificuldades de instituição desta figura no nosso
ordenamento enunciando algumas razões que estão na base de tal objecção. Antes
de mais, a dificuldade de harmonização deste meio processual com o sistema de
fiscalização da constitucionalidade de normas jurídicas, onde o recurso de
constitucionalidade representa por si só uma determinante protecção em matéria
de direitos fundamentais. Depois, a existência de uma variadas garantias
constitucionais de tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos perante a Administração, entre as quais, o recurso
contencioso fundado em ilegalidade contra actos administrativos lesivos, a
adopção de medidas cautelares (suspensão da eficácia do acto) e o
reconhecimento do direito de impugnação contenciosa de normas administrativas
com eficácia externa que atentem contra direitos e interesses legalmente
protegidos. A isto, acresce o receio fundado no comprometimento da
operacionalidade e eficácia da actividade desenvolvida pelos Tribunais com o
excessivo número de «recursos».
Ora, embora não
tenha resultado da revisão constitucional supra
mencionada o acolhimento de uma acção constitucional de defesa, as
reivindicações daqueles que defendiam a instituição de um instrumento
processual específico para protecção de direitos, liberdades e garantias não
foram esquecidas. Acontece que, na órbita das modificações no plano da justiça
administrativa, é aditado o nº5 à redacção do art.20º da CRP, o qual abriu uma
porta à criação de soluções específicas que se concretizassem numa tutela
célere e efectiva dos direitos, liberdades e garantias. Resulta deste preceito
que os particulares devem beneficiar de um processo célere e prioritário na
defesa de direitos, liberdades e garantias pessoais, impondo-se assim, ao
legislador ordinário, a necessidade de criação de novos processos que dêem um
resposta ao imperativo jurídico-constitucional referido.
Atendendo ao
plano processual português, seja no âmbito do processo criminal (com o habeas
corpus), seja no processo cível (com as acções de declarativas de apreciação e
condenação e providências cautelares), deparamo-nos com um sistema de protecção
capaz de assegurar a eficácia contra violações de direitos, liberdades e
garantias.
Por sua vez, no
Contencioso Administrativo, faltava o carácter célere da tutela efectiva dos
direitos fundamentais.É neste sentido, de necessidade de reforma da justiça
cautelar administrativa apostando numa intervenção séria e coerente no nosso
sistema, que surge a intimação para a protecção de direitos, liberdades e
garantias.
·
Regime jurídico
VASCO PEREIRA
DA SILVA refere que “os direitos
fundamentais consubstanciam-se em regras substantivas, procedimentais e
processuais, pelo que a sua concretização não é possível, designadamente, sem
que existam os meios contenciosos adequados, de forma a assegurar a sua tutela
plena e efectiva. A garantia de um processo por um Tribunal independente e
imparcial, destinado a proteger as posições jurídicas subjectivas dos
particulares, e nomeadamente as que estão consagradas na lei fundamental,
constitui assim, simultaneamente, uma condição de realização e uma dimensão
essencial dos direitos fundamentais”.
A intimação
trata-se de um processo urgente de condenação judicial que visa a imposição de
uma conduta (positiva ou negativa – facere ou non-facere), à Administração e
aos particulares, de forma assegurar-se, em tempo útil, o exercício de um
direito, liberdade e garantia. Consiste num processo principal e autónomo,
assente num imperativo de urgência, apto a culminar numa decisão final da
relação controvertida.
O regime-regra
da Intimação para a protecção dos direitos, liberdades e garantias está
previsto no artigo 109º do CPTA e encontra a restante concretização nos artigos
110º e 111º, na Secção I do Capítulo II do Título IV do CPTA.
· Âmbito de aplicação
A previsão
regra do artigo 109º CPTA determina que o accionamento desta figura tem como
condição necessária a indisponibilidade da emissão de uma decisão de mérito com
vista a assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou
garantia, por não ser possível ou suficiente, mediante as circunstâncias
concretas, o decretamento de uma providência cautelar, segundo o disposto n
artigo 131º do CPTA.
O legislador
consagrou um alargamento do âmbito de protecção em relação ao nº5 do artigo 20º
da CRP, na medida em que podem ser tutelados direitos, liberdades e garantias,
pessoais e não pessoais, pese embora a interpretação meramente literal artigo
20º/5 da CRP circunscreva a aplicação a direitos, liberdades e garantias
pessoais que encontram uma maior conexão com direitos ligados à dignidade da
pessoa humana. Solução doutrinariamente criticada, nomeadamente pelo professor Vieira
de Andrade, no sentido em que esta circunscrição leva a uma exclusão de
direitos de participação política e de direitos que, como o direito à greve,
merecem tutela jurídica por via deste instrumento.
É neste sentido
que devemos integrar no âmbito de direitos, liberdades e garantias, não só os
que constam do título II, primeira parte da CRP, bem como, aqueles que devam
considerar-se de natureza análoga àqueles e que, portanto, enquadram-se na
previsão dos regimes aplicados. No entender de VIEIRA DE ANDRADE, esta extensão
resulta da estreita conexão destes direitos à dignidade da pessoa humana e pela
«consciência do perigo acrescido da
respectiva lesão, que, nas sociedades actuais, decorre sobretudo de o seu
exercício depender, de modo cada vez mais intenso, de actuações administrativas
não apenas negativas, mas também positivas». Este alargamento do âmbito de
aplicação consubstancia-se, assim, na protecção de direitos fundamentais e
análogos (pessoais ou políticos), assim como, a clássicos direitos fundamentais
e a novos direitos fundamentais (nomeadamente, os referentes a direito ao
ambiente, direito de asilo, direito ao reagrupamento familiar, etc.) que tanto
podem resultar de consagração constitucional, como de lei e convenção
internacional (cláusula aberta - art.16º da CRP).
A doutrina
propõe alguns critérios para determinação da natureza análoga a direitos,
liberdades e garantias, que são:
·
Referência à ideia de dignidade da pessoa humana
determinada a um nível que deva ser considerado materialmente constitucional
(VIEIRA DE ANDRADE)
·
Natureza negativa/defensiva, impondo um dever de
não-ingerência e de respeito;
·
Carácter determinado ou determinável dos
direitos (GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA);
Fornecidos os
critérios, a professora ANABELA COSTA LEÃO aponta para o facto de que, apesar
do carácter vago e da dificuldade de concretização destes critérios, sempre que
resulte das considerações feitas sobre o caso concreto que, de facto, estamos
perante uma situação de posição jurídica subjectiva suficientemente determinada
e de carácter defensivo, o mecanismo da Intimação para a protecção de direitos,
liberdades e garantias é aplicável, enquanto meio de garantias contra ameaças
ou lesões efectivas de direitos.
· Pressupostos
§
Legitimidade
Activa – a regra geral referente à
legitimidade activa encontra a sua previsão no artigo 9º do CTPA, sendo
determinada pelo critério da titularidade da relação material controvertida,
aferindo-se a legitimidade em conjugação com o art.109º do CPTA. Ora, terão
legitimidade para beneficiar da Intimação (preventiva ou repressiva) os
titulares de direitos, liberdades e garantias objecto de lesão. A titularidade
da legitimidade deve ser interpretada com base nas regras constitucionais de
direitos fundamentais e normas constitucionais relativas à sua titularidade
(artigo 12ºCRP – Princípio da Universalidade). Uma nota importante para a
particular situação das pessoas colectivas. Sucede que, a estas é reconhecida,
por via do Princípio da Universalidade, a susceptibilidade de serem titulares
de direitos fundamentais. Este alargamento da dimensão institucional dos
direitos fundamentais às pessoas colectivas traduz-se no reconhecimento de
ultrapassagem de uma concepção individualista, demarcada pelo Estado Liberal,
que coloca o Homem numa perspectiva institucional e colectiva, compreendendo-se
a dignidade humana não como uma dignidade abstracta, mas a dignidade do Homem
situado. O professor JORGE MIRANDA aponta para esta dupla dimensão dos direitos
fundamentais, definindo-os como «direitos ou posições jurídicas activas das
pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes
na Constituição». Para o professor, os direitos fundamentais das pessoas
colectivas são ainda direitos ao serviço das pessoas que as integram, naquilo
em que não se afastam por completo. Deverão, portanto, ser reconhecidos os
direitos às pessoas colectivas que se compadeçam com a sua natureza, e feitas
as necessárias adaptações.
Passiva – a regra geral constante no
artigo 10º do CPTA é a da titularidade da relação material controvertida, tendo
legitimidade passiva a contra-parte e os contra-interessados. No plano da
Intimação, tem legitimidade activa a parte coactora (Administração ou
particulares), segundo o art. 10º/7 e art.109º.
§
Urgência de emissão de uma decisão de mérito
Determinando a
exigência, no art.109 do CPTA, de que a «célere
emissão de uma decisão de mérito (…) se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um
direito, liberdade ou garantia», o legislador faz ressaltar o carácter
excepcional da figura da Intimação, uma vez que, não sendo provada a urgência
da decisão, a acção segue o processo normal de tutela dessa posição jurídica. Para
se aferir a indispensabilidade, ou não, da decisão de mérito, terá o juiz de
confirmar a existência de uma necessidade imediata e prioritária de tomada de
decisão. O juiz fará a devida ponderação, no caso concreto, sobre a lesão
actual ou iminente dos direitos efectivos da parte activa, determinando, ou
não, a necessidade de se recorrer à Intimação para salvaguarda das pretensões
invocadas.
§
A subsidiariedade da Intimação para protecção dos direitos, liberdades e
garantias
O artigo 109/1-
parte final estabelece que, para o decretamento do processo de Intimação,
deverá tratar-se de uma situação em que não se vislumbra possível ou suficiente o «decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o
disposto do artigo 131º». O legislador estabeleceu esta limitação ao acesso
da figura da Intimação com objectivo de não transformar os processos urgentes
em processos principais. Procura-se, assim, efectuar uma filtragem de processos
que, caso contrário, conduziriam a uma acumulação excessiva de processos nos
Tribunais. Deste pressuposto resulta que a figura da Intimação actuará somente
quando outros meios processuais do contencioso não correspondam adequadamente,
e em tempo útil, à protecção efectiva de um direito, liberdade ou garantia.
A providência
cautelar é um procedimento judicial que, a par da intimação, concretiza o já
referido artigo 20º/5 da CRP. Acontece que, neste caso, procede-se a uma tutela
cautelar de carácter provisório (e não definitivo), pelo que, sempre que esta
provisoriedade da providência cautelar não se consubstancie numa tutela plena
do direito, liberdade ou garantia, entrará em cena a intimação.
§
Competência do Tribunal
O Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) estipula que a apreciação de litígios
que tenham por objecto a tutela de direitos fundamentais compete à jurisdição
administrativa. Particularmente, no que concerne à averiguação do pedido de Intimação
em primeira instância, determina o art.44º/1-1ª Parte do ETAF, que são os
tribunais administrativos do círculo os competentes nesta matéria. Para se
aferir qual o Tribunal territorialmente competente, versa o art.20º/5 da CRP,
que é competente o “Tribunal da área onde deva ter lugar o comportamento ou a
omissão pretendidos” quando se trate de pedido de intimação que não seja
alusiva a prestação de informações, consulta de documentos e passagens de
certidões.
Não preenchimento dos pressupostos: absolvição ou convolação?
Um ponto
relevante nesta matéria que se torna pertinente analisar, prende-se com o não
preenchimento dos pressupostos do art.109º para efeitos de decretamento da
Intimação e a possível consequência resultante dessa falta. A jurisprudência
tem apontado para a absolvição do réu da instância (por via da impropriedade da
forma processual utilizada) ou entendido que a falta deve culminar na convolação
num processo cautelar, que pode ser um processo “normal” como um processo
especial do art.131º, que determina o decretamento provisório.
Alguma doutrina
procura ajudar-nos na compreensão da solução mais adequada mediante situação de
preterição de algum pressuposto. O professor R. ESTEVES DE OLIVEIRA defende,
por seu lado, que a convolação será determinada sempre que se verifique um
excesso de processo, ou seja, quando o interessado, erradamente, julga
necessitar com urgência de uma emissão de decisão de fundo para a situação que
submete a tribunal, quando, na verdade, não precisa; por outro lado, será
decretada a absolvição nas situações em que, o interessado requer a Intimação
para uma situação que, na verdade, não carece de protecção (por exemplo, por
não existir, sequer, um direito, liberdade e garantia a tutelar); Por seu
turno, a professora FERNANDA MAÇÃS observa que alguma jurisprudência tem
seguido o entendimento de proceder à absolvição da instância, uma vez que, face
à inaptidão do requerimento inicial, é necessário reformular de novo o pedido
com o argumento de que, em situação alguma, o principio da tutela jurisdicional
efectiva se pode condizer com a preterição de princípios estruturantes do
processo civil. Por último, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, refere que perante a
negação do processo de intimação por via do art.131º deverá o juiz decretar a
convolação oficiosa do processo num processo cautelar, aferindo que tratando-se
de protecção efectiva de direitos, liberdades e garantias, não pode a decisão
culminar numa mera absolvição da instância.
Parece-me de
seguir o entendimento de M.AROSO DE ALMEIDA, no sentido de que, no fundo, é de
um direito, liberdade ou garantia que estamos a falar (excepto em caso de
absoluto erro, como aponta, e bem, ESTEVES OLIVEIRA). A justiça cautelar
administrativa não pode, em caso algum, perante uma situação de perigosidade
de lesar um direito fundamental (apesar de que não iminente e urgente),
proferir simples absolvição da instância por inaptidão do requerimento inicial
colocando na esfera do particular o ónus de formulação de novo processo. A
convolação constitui, assim, um meio de garantia dos direitos fundamentais do
particular que, apesar de não estarem na iminência de ser lesados, são, ainda
assim, direito, liberdades e garantias merecedores de tutela efectiva (por
isto, contra F.MAÇÃS).
A Tramitação Processual da Intimação para a protecção dos
direitos, liberdades e garantias
A Intimação é
um processo de carácter urgente - art.36º/1-d), art.110º e 111º do CPTA -
caracterizada pela simplicidade e rapidez, cuja tramitação assume diversas
formas, que são delimitadas em função do grau de urgência e do juízo de
aferição da complexidade da matéria submetida a Tribunal. O professor VIEIRA DE
ANDRADE assinala que “o processo, sempre
urgente, é, porém, dotado da urgência que for adequada às circunstâncias
concretas do caso, atribuindo a lei ao juiz uma prerrogativa de avaliação, que
deve ser entendida com um poder-dever especialmente destinado à protecção dos
direitos fundamentais – não se trata apenas do reconhecimento de uma posição
estratégica natural do juiz para a adaptação do processo, mas também de uma
manifestação da ideia constitucional do juiz como responsável directo pelo
cumprimento da Constituição”.
A doutrina
alude a diferentes modalidades de tramitação, apontando para a existência de
modelos de tramitação urgente (normal); de urgência qualificada; e de urgência
em processos complexos. Tudo dependerá da intensidade da urgência e do perigo
de lesão iminente e irreversível do direito, liberdade ou garantia.
Sentença
Com o
instrumento processual de intimação procura-se obter uma sentença de condenação
da parte da Administração, ou particular, a adoptar uma conduta positiva ou
negativa. Tratar-se-á de uma decisão de carácter condenatório e definitivo, na
qual o tribunal formula injunções à contra-parte no propósito de efectivar a
tutela do direito, liberdade ou garantia em questão. Pode suceder que,
dirigindo-se a pretensão à prática de um acto administrativo, a lei aceite
excepcionalmente (e apenas a título excepcional por respeito ao princípio da
separação de poderes) a possibilidade de proferir sentença substitutiva, por
força do art.109º/3, por se tratar de acto administrativo estritamente
vinculado.
Uma vez decretada
sentença que se concretize na improcedência do pedido de intimação, pode o autor,
em todo o caso, recorrer da decisão, independentemente do valor da causa
(art.142/3- a) CPTA.
Bibliografia
- ANDRADE, José Carlos Vieira – A Justiça Administrativa, Almedina, 2009;
- COSTA LEÃO, Anabela – A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias;
- DIAS, José Eduardo Figueiredo Dias - Intimação para protecção de direitos,
liberdades e garantias In: Boletim da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra, Vol. 84 (2008);
- GOMES, Carla Amado – Pretexto, Contexto e Texto da Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, 2003;
- PEREIRA DA SILVA, Vasco – O Contencioso Administrativo no divã da psicanálise
Tomás Cacela da Silva, nº22480
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