sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

A Intimação para a protecção dos direitos, liberdades e garantias

A Intimação para a protecção dos direitos, liberdades e garantias

A busca por um mecanismo processual específico de tutela dos direitos, liberdades e garantias encontra as suas raízes no quadro da Constituição da República Portuguesa (doravante “CRP”). Mais precisamente, esta necessidade resulta do aditamento do nº5 ao art.20º da CRP, bem como, da ausência de um meio processual específico de queixa constitucional que se concretize na tutela efectiva de direitos fundamentais.

·       Contextualização

A instituição da figura processual da “Intimação” no ordenamento jurídico português é o resultado de um longo processo de maturação e debate legislativo e doutrinal que tem como pretexto o antigo desejo de se instituir um recurso de amparo no nosso ordenamento. Remontando às revisões constitucionais de 1989 e 1997, em que nos deparamos com a tentativa falhada de introdução do recurso de amparo por falta de maioria de aprovação, procurou-se introduzir uma acção constitucional que promovesse a defesa contra acções ou omissões dos poderes públicos que infringissem direitos, liberdades e garantias, bem como, a criação de um instituto de recurso constitucional de defesa contra decisões jurisdicionais que atentassem contra tais direitos.

ALVES CORREIA ajuda-nos a perceber as dificuldades de instituição desta figura no nosso ordenamento enunciando algumas razões que estão na base de tal objecção. Antes de mais, a dificuldade de harmonização deste meio processual com o sistema de fiscalização da constitucionalidade de normas jurídicas, onde o recurso de constitucionalidade representa por si só uma determinante protecção em matéria de direitos fundamentais. Depois, a existência de uma variadas garantias constitucionais de tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos perante a Administração, entre as quais, o recurso contencioso fundado em ilegalidade contra actos administrativos lesivos, a adopção de medidas cautelares (suspensão da eficácia do acto) e o reconhecimento do direito de impugnação contenciosa de normas administrativas com eficácia externa que atentem contra direitos e interesses legalmente protegidos. A isto, acresce o receio fundado no comprometimento da operacionalidade e eficácia da actividade desenvolvida pelos Tribunais com o excessivo número de «recursos».
Ora, embora não tenha resultado da revisão constitucional supra mencionada o acolhimento de uma acção constitucional de defesa, as reivindicações daqueles que defendiam a instituição de um instrumento processual específico para protecção de direitos, liberdades e garantias não foram esquecidas. Acontece que, na órbita das modificações no plano da justiça administrativa, é aditado o nº5 à redacção do art.20º da CRP, o qual abriu uma porta à criação de soluções específicas que se concretizassem numa tutela célere e efectiva dos direitos, liberdades e garantias. Resulta deste preceito que os particulares devem beneficiar de um processo célere e prioritário na defesa de direitos, liberdades e garantias pessoais, impondo-se assim, ao legislador ordinário, a necessidade de criação de novos processos que dêem um resposta ao imperativo jurídico-constitucional referido.
Atendendo ao plano processual português, seja no âmbito do processo criminal (com o habeas corpus), seja no processo cível (com as acções de declarativas de apreciação e condenação e providências cautelares), deparamo-nos com um sistema de protecção capaz de assegurar a eficácia contra violações de direitos, liberdades e garantias.
Por sua vez, no Contencioso Administrativo, faltava o carácter célere da tutela efectiva dos direitos fundamentais.É neste sentido, de necessidade de reforma da justiça cautelar administrativa apostando numa intervenção séria e coerente no nosso sistema, que surge a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias.

·         Regime jurídico

VASCO PEREIRA DA SILVA refere que “os direitos fundamentais consubstanciam-se em regras substantivas, procedimentais e processuais, pelo que a sua concretização não é possível, designadamente, sem que existam os meios contenciosos adequados, de forma a assegurar a sua tutela plena e efectiva. A garantia de um processo por um Tribunal independente e imparcial, destinado a proteger as posições jurídicas subjectivas dos particulares, e nomeadamente as que estão consagradas na lei fundamental, constitui assim, simultaneamente, uma condição de realização e uma dimensão essencial dos direitos fundamentais”.

A intimação trata-se de um processo urgente de condenação judicial que visa a imposição de uma conduta (positiva ou negativa – facere ou non-facere), à Administração e aos particulares, de forma assegurar-se, em tempo útil, o exercício de um direito, liberdade e garantia. Consiste num processo principal e autónomo, assente num imperativo de urgência, apto a culminar numa decisão final da relação controvertida.
O regime-regra da Intimação para a protecção dos direitos, liberdades e garantias está previsto no artigo 109º do CPTA e encontra a restante concretização nos artigos 110º e 111º, na Secção I do Capítulo II do Título IV do CPTA.

·       Âmbito de aplicação

A previsão regra do artigo 109º CPTA determina que o accionamento desta figura tem como condição necessária a indisponibilidade da emissão de uma decisão de mérito com vista a assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, mediante as circunstâncias concretas, o decretamento de uma providência cautelar, segundo o disposto n artigo 131º do CPTA.
O legislador consagrou um alargamento do âmbito de protecção em relação ao nº5 do artigo 20º da CRP, na medida em que podem ser tutelados direitos, liberdades e garantias, pessoais e não pessoais, pese embora a interpretação meramente literal artigo 20º/5 da CRP circunscreva a aplicação a direitos, liberdades e garantias pessoais que encontram uma maior conexão com direitos ligados à dignidade da pessoa humana. Solução doutrinariamente criticada, nomeadamente pelo professor Vieira de Andrade, no sentido em que esta circunscrição leva a uma exclusão de direitos de participação política e de direitos que, como o direito à greve, merecem tutela jurídica por via deste instrumento.
É neste sentido que devemos integrar no âmbito de direitos, liberdades e garantias, não só os que constam do título II, primeira parte da CRP, bem como, aqueles que devam considerar-se de natureza análoga àqueles e que, portanto, enquadram-se na previsão dos regimes aplicados. No entender de VIEIRA DE ANDRADE, esta extensão resulta da estreita conexão destes direitos à dignidade da pessoa humana e pela «consciência do perigo acrescido da respectiva lesão, que, nas sociedades actuais, decorre sobretudo de o seu exercício depender, de modo cada vez mais intenso, de actuações administrativas não apenas negativas, mas também positivas». Este alargamento do âmbito de aplicação consubstancia-se, assim, na protecção de direitos fundamentais e análogos (pessoais ou políticos), assim como, a clássicos direitos fundamentais e a novos direitos fundamentais (nomeadamente, os referentes a direito ao ambiente, direito de asilo, direito ao reagrupamento familiar, etc.) que tanto podem resultar de consagração constitucional, como de lei e convenção internacional (cláusula aberta - art.16º da CRP).
A doutrina propõe alguns critérios para determinação da natureza análoga a direitos, liberdades e garantias, que são:

·         Referência à ideia de dignidade da pessoa humana determinada a um nível que deva ser considerado materialmente constitucional (VIEIRA DE ANDRADE)
·         Natureza negativa/defensiva, impondo um dever de não-ingerência e de respeito;
·         Carácter determinado ou determinável dos direitos (GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA);


Fornecidos os critérios, a professora ANABELA COSTA LEÃO aponta para o facto de que, apesar do carácter vago e da dificuldade de concretização destes critérios, sempre que resulte das considerações feitas sobre o caso concreto que, de facto, estamos perante uma situação de posição jurídica subjectiva suficientemente determinada e de carácter defensivo, o mecanismo da Intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias é aplicável, enquanto meio de garantias contra ameaças ou lesões efectivas de direitos.

·       Pressupostos

§        Legitimidade

Activa – a regra geral referente à legitimidade activa encontra a sua previsão no artigo 9º do CTPA, sendo determinada pelo critério da titularidade da relação material controvertida, aferindo-se a legitimidade em conjugação com o art.109º do CPTA. Ora, terão legitimidade para beneficiar da Intimação (preventiva ou repressiva) os titulares de direitos, liberdades e garantias objecto de lesão. A titularidade da legitimidade deve ser interpretada com base nas regras constitucionais de direitos fundamentais e normas constitucionais relativas à sua titularidade (artigo 12ºCRP – Princípio da Universalidade). Uma nota importante para a particular situação das pessoas colectivas. Sucede que, a estas é reconhecida, por via do Princípio da Universalidade, a susceptibilidade de serem titulares de direitos fundamentais. Este alargamento da dimensão institucional dos direitos fundamentais às pessoas colectivas traduz-se no reconhecimento de ultrapassagem de uma concepção individualista, demarcada pelo Estado Liberal, que coloca o Homem numa perspectiva institucional e colectiva, compreendendo-se a dignidade humana não como uma dignidade abstracta, mas a dignidade do Homem situado. O professor JORGE MIRANDA aponta para esta dupla dimensão dos direitos fundamentais, definindo-os como «direitos ou posições jurídicas activas das pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes na Constituição». Para o professor, os direitos fundamentais das pessoas colectivas são ainda direitos ao serviço das pessoas que as integram, naquilo em que não se afastam por completo. Deverão, portanto, ser reconhecidos os direitos às pessoas colectivas que se compadeçam com a sua natureza, e feitas as necessárias adaptações.

Passiva – a regra geral constante no artigo 10º do CPTA é a da titularidade da relação material controvertida, tendo legitimidade passiva a contra-parte e os contra-interessados. No plano da Intimação, tem legitimidade activa a parte coactora (Administração ou particulares), segundo o art. 10º/7 e art.109º.

§        Urgência de emissão de uma decisão de mérito

Determinando a exigência, no art.109 do CPTA, de que a «célere emissão de uma decisão de mérito (…) se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia», o legislador faz ressaltar o carácter excepcional da figura da Intimação, uma vez que, não sendo provada a urgência da decisão, a acção segue o processo normal de tutela dessa posição jurídica. Para se aferir a indispensabilidade, ou não, da decisão de mérito, terá o juiz de confirmar a existência de uma necessidade imediata e prioritária de tomada de decisão. O juiz fará a devida ponderação, no caso concreto, sobre a lesão actual ou iminente dos direitos efectivos da parte activa, determinando, ou não, a necessidade de se recorrer à Intimação para salvaguarda das pretensões invocadas.

§        A subsidiariedade da Intimação para protecção dos direitos, liberdades e garantias

O artigo 109/1- parte final estabelece que, para o decretamento do processo de Intimação, deverá tratar-se de uma situação em que não se vislumbra possível  ou suficiente o «decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto do artigo 131º». O legislador estabeleceu esta limitação ao acesso da figura da Intimação com objectivo de não transformar os processos urgentes em processos principais. Procura-se, assim, efectuar uma filtragem de processos que, caso contrário, conduziriam a uma acumulação excessiva de processos nos Tribunais. Deste pressuposto resulta que a figura da Intimação actuará somente quando outros meios processuais do contencioso não correspondam adequadamente, e em tempo útil, à protecção efectiva de um direito, liberdade ou garantia.
A providência cautelar é um procedimento judicial que, a par da intimação, concretiza o já referido artigo 20º/5 da CRP. Acontece que, neste caso, procede-se a uma tutela cautelar de carácter provisório (e não definitivo), pelo que, sempre que esta provisoriedade da providência cautelar não se consubstancie numa tutela plena do direito, liberdade ou garantia, entrará em cena a intimação.

§        Competência do Tribunal

O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) estipula que a apreciação de litígios que tenham por objecto a tutela de direitos fundamentais compete à jurisdição administrativa. Particularmente, no que concerne à averiguação do pedido de Intimação em primeira instância, determina o art.44º/1-1ª Parte do ETAF, que são os tribunais administrativos do círculo os competentes nesta matéria. Para se aferir qual o Tribunal territorialmente competente, versa o art.20º/5 da CRP, que é competente o “Tribunal da área onde deva ter lugar o comportamento ou a omissão pretendidos” quando se trate de pedido de intimação que não seja alusiva a prestação de informações, consulta de documentos e passagens de certidões.

Não preenchimento dos pressupostos: absolvição ou convolação?

Um ponto relevante nesta matéria que se torna pertinente analisar, prende-se com o não preenchimento dos pressupostos do art.109º para efeitos de decretamento da Intimação e a possível consequência resultante dessa falta. A jurisprudência tem apontado para a absolvição do réu da instância (por via da impropriedade da forma processual utilizada) ou entendido que a falta deve culminar na convolação num processo cautelar, que pode ser um processo “normal” como um processo especial do art.131º, que determina o decretamento provisório.
Alguma doutrina procura ajudar-nos na compreensão da solução mais adequada mediante situação de preterição de algum pressuposto. O professor R. ESTEVES DE OLIVEIRA defende, por seu lado, que a convolação será determinada sempre que se verifique um excesso de processo, ou seja, quando o interessado, erradamente, julga necessitar com urgência de uma emissão de decisão de fundo para a situação que submete a tribunal, quando, na verdade, não precisa; por outro lado, será decretada a absolvição nas situações em que, o interessado requer a Intimação para uma situação que, na verdade, não carece de protecção (por exemplo, por não existir, sequer, um direito, liberdade e garantia a tutelar); Por seu turno, a professora FERNANDA MAÇÃS observa que alguma jurisprudência tem seguido o entendimento de proceder à absolvição da instância, uma vez que, face à inaptidão do requerimento inicial, é necessário reformular de novo o pedido com o argumento de que, em situação alguma, o principio da tutela jurisdicional efectiva se pode condizer com a preterição de princípios estruturantes do processo civil. Por último, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, refere que perante a negação do processo de intimação por via do art.131º deverá o juiz decretar a convolação oficiosa do processo num processo cautelar, aferindo que tratando-se de protecção efectiva de direitos, liberdades e garantias, não pode a decisão culminar numa mera absolvição da instância.
Parece-me de seguir o entendimento de M.AROSO DE ALMEIDA, no sentido de que, no fundo, é de um direito, liberdade ou garantia que estamos a falar (excepto em caso de absoluto erro, como aponta, e bem, ESTEVES OLIVEIRA). A justiça cautelar administrativa não pode, em caso algum, perante uma situação de perigosidade de lesar um direito fundamental (apesar de que não iminente e urgente), proferir simples absolvição da instância por inaptidão do requerimento inicial colocando na esfera do particular o ónus de formulação de novo processo. A convolação constitui, assim, um meio de garantia dos direitos fundamentais do particular que, apesar de não estarem na iminência de ser lesados, são, ainda assim, direito, liberdades e garantias merecedores de tutela efectiva (por isto, contra F.MAÇÃS).

A Tramitação Processual da Intimação para a protecção dos direitos, liberdades e garantias

A Intimação é um processo de carácter urgente - art.36º/1-d), art.110º e 111º do CPTA - caracterizada pela simplicidade e rapidez, cuja tramitação assume diversas formas, que são delimitadas em função do grau de urgência e do juízo de aferição da complexidade da matéria submetida a Tribunal. O professor VIEIRA DE ANDRADE assinala que “o processo, sempre urgente, é, porém, dotado da urgência que for adequada às circunstâncias concretas do caso, atribuindo a lei ao juiz uma prerrogativa de avaliação, que deve ser entendida com um poder-dever especialmente destinado à protecção dos direitos fundamentais – não se trata apenas do reconhecimento de uma posição estratégica natural do juiz para a adaptação do processo, mas também de uma manifestação da ideia constitucional do juiz como responsável directo pelo cumprimento da Constituição”.
A doutrina alude a diferentes modalidades de tramitação, apontando para a existência de modelos de tramitação urgente (normal); de urgência qualificada; e de urgência em processos complexos. Tudo dependerá da intensidade da urgência e do perigo de lesão iminente e irreversível do direito, liberdade ou garantia.

Sentença

Com o instrumento processual de intimação procura-se obter uma sentença de condenação da parte da Administração, ou particular, a adoptar uma conduta positiva ou negativa. Tratar-se-á de uma decisão de carácter condenatório e definitivo, na qual o tribunal formula injunções à contra-parte no propósito de efectivar a tutela do direito, liberdade ou garantia em questão. Pode suceder que, dirigindo-se a pretensão à prática de um acto administrativo, a lei aceite excepcionalmente (e apenas a título excepcional por respeito ao princípio da separação de poderes) a possibilidade de proferir sentença substitutiva, por força do art.109º/3, por se tratar de acto administrativo estritamente vinculado.
Uma vez decretada sentença que se concretize na improcedência do pedido de intimação, pode o autor, em todo o caso, recorrer da decisão, independentemente do valor da causa (art.142/3- a) CPTA.

Bibliografia

  • ANDRADE, José Carlos Vieira  – A Justiça Administrativa, Almedina, 2009;
  • COSTA LEÃO, Anabela – A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias;
  • DIAS, José Eduardo Figueiredo Dias - Intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias  In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. 84 (2008);
  • GOMES, Carla Amado –  Pretexto, Contexto e Texto da Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias,  in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, 2003;
  • PEREIRA DA SILVA, Vasco – O Contencioso Administrativo no divã da psicanálise
Tomás Cacela da Silva, nº22480

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