sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Sistema francês – perspetivas do Direito Comparado no Contencioso Administrativo

Com o advento da Revolução Francesa, no século XVIII, veio a assistir-se também ao nascer do Contencioso Administrativo, constituindo um marco inegável na área do Direito Administrativo.
Efetivamente, apesar de, no Antigo Regime, se verificar alguns dos contornos que expressavam, de algum modo, uma autonomização das jurisdições administrativas, nomeadamente, ao nível das águas e florestas, a grande maioria dos litígios eram dirimidos pelos tribunais comuns.
Neste sentido, constatou-se, a par de profundas transformações operadas na sociedade francesa, a subordinação do Governo a uma Administração concentrada. A este propósito, veio a Lei de 16-24 de Agosto de 1790 estabelecer, no seu artigo 13.º, uma separação entre as funções judiciais e as funções administrativas.
Tal situação se explica pelo clima de desconfiança da nova ordem do Conselho de Estado que tinha estado comprometida com os ideais e as instituições ligadas ao Antigo Regime, constituindo, nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, “o primeiro [de todos] os acontecimentos traumáticos [decorrente] do surgimento do Contencioso Administrativo, na Revolução Francesa, concebido como privilégio do foro da Administração, destinado a garantir a defesa dos poderes públicos e não a assegurar a proteção dos direitos dos particulares”1.
Sucede, todavia, que esse processo descambou, naturalmente, numa contradição lógica, dissociando-se a função judicial da função administrativa, pois, de acordo com o entendimento predominante, «julgar a Administração é ainda administrar», deixando a fiscalização da legalidades nas relações entre os administrados e a Administração, nas mãos dos topos das hierarquias administrativas.
Uma década volvida, foi criado o Conselho de Estado, que se traduzia num hibridismo entre aquilo que tinha sido o Conselho do Rei, ao nível das competências e prerrogativas, em conformidade com o respeito pelo princípio revolucionário da separação de poderes. De acordo com isto, às decisões dos ministros, cabia recurso para o Primeiro Cônsul que decidia, sob consulta do Conselho de Estado.
Neste seguimento, surgem os conselhos de prefeitura que, além das funções consultivas que exerciam relativamente ao prefeito, a eles competiam matérias de contribuições diretas, quanto às obras públicas, bens de domínio público e nacionais.
Distinguiam-se estes, contudo, do Conselho de Estado, porque a estes era atribuída a competência por jurisdição, exercendo essa função mediantes poderes próprios de decisão imperativa do pleito, ao contrário do que se verificava no Conselho de Estado, dispondo apenas de poderes consultivos, porque cabia ao Chefe Executivo formalmente o poder de julgar.
Depois de uma breve tentativa gorada de abandonar a jurisdição reservada ao Primeiro Cônsul, na primeira metade do século XIX, os ventos trazidos por novas vontades políticas retomam a ideia de jurisdição reservada, sendo que, a partir de 1860, o Conselho de Estado veio a ganhar cada vez mais impulso e maior controlo, criando-se a figura do recurso por excesso de poder, consagrando-se, ainda, na jurisprudência, o princípio de revisão de legalidade de todo o ato administrativo.
Com esta viragem, constatou-se um progressivo reforço dos poderes e competências do Conselho de Estado, de tal modo que na Terceira República, foi-lhe delegado um direito de jurisdição em matéria contenciosa, ao passo que os conselhos de prefeitura viram as suas áreas territoriais de competência alargarem-se progressivamente.
O ponto de viragem fundamental deu-se, no entanto, a partir do Caso Cadot, de 13 de Dezembro de 1889, reconhecendo-se o poder do Conselho de Estado para conhecer e julgar de todos os atos da administração, afastando-se a imiscuição do juiz administrativo de direito comum.
Feita esta evolução, a partir de 1953, veio a caber aos tribunais administrativos julgar em primeira instância os litígios administrativos no âmbito da sua área territorial, cabendo recurso das suas sentenças para o Conselho de Estado, que excecionalmente possuía competências para julgar em primeira instância.
Em 1987, a aprovação de uma Lei pelo Parlamento, veio a introduzir duas alterações legislativas com o intuito de tornar mais eficiente e fluídos os processos instaurados e julgados e ainda os recursos, de modo a combater a morosidade das decisões jurisdicionais.
Nesse sentido, foram criados tribunais administrativos de apelação, que julgavam em segunda instância os recursos das decisões dos tribunais administrativos, exercendo o Conselho de Estado, sobre as suas decisões, uma competência de apreciação das mesmas, quanto a questões de direito.
Por outro lado, estabeleceu-se também um procedimento prévio de admissão, submetendo-se todos os requerimentos de recurso de cassação apresentados perante o Conselho de Estado, que recusava o recurso irrecebível ou não fundado em razões sérias, permitindo ao tribunal administrativo ou ao tribunal administrativo de apelação, quando fossem confrontados com uma nova questão de direito que apresentasse uma dificuldade séria e repetida em numerosos litígios, transmitir essa situação ao Conselho de Estado, para que este emitisse um parecer, o que, apesar de não ser vinculativo, ia no sentido de fazer convergir a jurisprudência.
Razões de ordem de imparcialidade, e não tanto relacionadas com a eficiência, levaram também a que se tenha procedido a algumas modificações, no respeitante à amálgama de funções entre a função exercida junto da jurisdição administrativa ancorada na Administração e as funções consultivas, tendo-se fixado regras que garantiam a independência dos juízes dos tribunais administrativos.
Contrariamente ao que sucede em toda a Europa, continua o paradigma do Contencioso Administrativo a manter-se fiel, nos tempos que correm, ao princípio de que «julgar a Administração é ainda administrar», estando os tribunais judiciais proibidos de decidir sobre a legalidade das decisões administrativas.
Neste sentido, apesar da proximidade entre a administração e a justiça administrativa, tendo em consideração que o Conselho de Estado e os tribunais administrativos estão organicamente ligados ao poder executivo, o que sucede é que, por meio de recurso por excesso de poder, pode um interessado pedir que ao juiz, ao abrigo da sua competência revisora da decisão administrativa, anular um ato administrativo com fundamento em ilegalidade.
No entanto, a evolução dos tempos trouxe consigo algumas modificações no panorama do Contencioso Administrativo francês, redistribuindo-se papéis ao nível das instituições relevantes, envolvendo órgãos jurisdicionais e a intervenção do legislador, bem como reajustes no Conselho de Estado e nos tribunais administrativos que vieram a dar um novo fôlego à atividade da jurisprudência administrativa à beira da estagnação.
Neste sentido, já na década de 80, do século XX, procederam-se a duas alterações legislativas que vieram a reforçar o grau de tutela jurisdicional: a primeira, relativamente às sanções pecuniárias, pois, quando um tribunal estatui sobre um litígio que está inerente uma medida de execução, poderá prescrever tal medida e fixar a sanção pecuniária compulsória; a segunda, quanto ao fundo de um litígio inerente a uma pessoa coletiva de direito público, ou de um organismo de direito privado encarregue da gestão de serviço público, pode o tribunal prescrever que a nova decisão tenha lugar num prazo determinando e complementarmente, fixar também uma sanção pecuniária.
Com este sentido, não obstante o juiz não decidir oficiosamente sobre as injunções, ao pronunciá-las, após serem requeridas pelo recorrente, o juiz atua no quadro contencioso de plena jurisdição, reforçada pela razão de que a sanção pecuniária compulsória que pode acompanhar a injunção representa eficiência de modo a que haja acatamento da injunção.
Em sentido diverso, conclui-se também que entre o Conselho de Estado e o Conselho Constitucional se encontraram fórmulas de conjugação do exercício das respetivas competências, que na prática tiveram como resultado a integração conjunta de um universo de princípios e regras do Direito Administrativo e do Direito Constitucional.
Nessa medida, verificou-se, desde logo, uma subalternação do Conselho de Estado face ao Conselho Constitucional, definindo, a partir do texto da Constituição, o estatuto constitucional do Conselho de Estado como órgão de jurisdição. Na mesma linha, veio, também, a Constituição a consagrar como princípios fundamentais a existências de uma ordem jurisdicional administrativa, bem como o estatuto de independências dos seus juízes. Por fim, foi também introduzida a titularidade pela ordem jurisdicional administrativa, de uma esfera reservada de competência de anulação e reforma das decisões tomadas pelas autoridades administrativas, no exercício de prerrogativas de poder público.
A isto acresce que o Conselho de Estado nunca contestou um direito ou uma liberdade reconhecidos pelo Conselho Constitucional, para além de ser assistido a uma homogeneização entre os dois conjuntos de princípios, tendo, inclusivamente, o Conselho Constitucional se enriquecido jurisprudencialmente a partir do Conselho de Estado, havendo, por outro lado, uma maior aplicação direta do Direito Constitucional pelo Conselho de Estado.
Daí que se possa considerar, em última análise, que a revitalização do Direito Administrativo se deu fruto da absorção pela jurisprudência administrativa da atuação do Conselho Constitucional.
Por último, uma última palavra quanto às relações do Conselho de Estado com o Tribunal de Justiça da União Europeia, havendo a referir que há um primado do Direito Comunitário face ao Conselho de Estado, sendo que, todavia, cabe a este o controlo por ilegalidade dos regulamentos e atos administrativos que se não conformem com os objetivos definidos por uma diretiva comunitária.
Para finalizar, quanto a matéria de reenvio prejudicial, apesar de se ter desbloqueado o recurso ao reenvio no que concerne à jurisdição administrativa francesa, rejeitou-se, no entanto, ao juiz do Tribunal de Justiça da União Europeia, que se pronuncie sobre a compatibilidade da legislação nacional com o Direito Comunitário, ou que este fixe as condições sob as quais o juiz nacional pode ordenar a suspensão da eficácia de um ato administrativo interno fundado num regulamento interno comunitário, ou tomar posição quanto às regras aplicáveis à responsabilidade de um Estado-membro que não transponha uma diretiva.  


1 “Vasco Pereira da Silva, o Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise Ensaio sobre as ações do novo processo administrativo, 2.ª Edição, Almedina”, pg. 10.



Igor Teixerira, nº 20875

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