A
acção administrativa “única” e o fim da dicotomia acção comum-acção especial[i]
O regime que vigorou até à entrada em vigor do novo
Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante nCPTA) resultava da
opção pelo Legislador, na reforma de 2002/2004, por um modelo dualista que
distinguia entre acção administrativa comum (art. 37º do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos, doravante CPTA) e acção administrativa especial
(art. 46.º CPTA).
Este modelo havia sido transposto para o CPTA com base na
solução que vigorava e que fazia a distinção entre recurso contencioso de
anulação (regulado então pela com alterações Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos – Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho) e acções sobre
contratos e de responsabilidade civil (reguladas pelo regime do Código de
Processo Civil – doravante CPC).
A distinção entre as acções consagradas no CPTA parecia,
para a doutrina, ter por base a existência, ou não, de uma relação jurídica
paritária entre os sujeitos envolvidos no processo, ou seja, o critério de
distinção passava por se estar, ou não, perante a prática ou omissão de manifestações
de ius imperii por parte da
administração. Assim, parece ser possível concluir que, tendencialmente, “e em
termos muito genéricos, pode dizer-se que, de acordo com o elenco das formas de
processos previsto […] no CPTA, quando sejam deduzidas pretensões relacionadas
com o exercício de poderes de autoridade (atos administrativos e normas
regulamentares), o processo deverá seguir a forma da ação administrativa
especial; quando assim não aconteça, o processo seguirá a forma da ação
administrativa comum”[ii].
Também a jurisprudência, relativamente à distinção plasmada no CPTA, parecia
dar relevância ao critério de saber se o processo dizia respeito, ou não, ao
exercício de poderes de autoridade pela Administração[iii].
As críticas na doutrina a esta transposição, aquando da
reforma de 2002/2004, amontoaram-se, sendo em virtude destas que assistimos a
uma nova reforma em que se justifica o abandono da dicotomia por duas ordens de
razões, segundo o preâmbulo da proposta de decreto-lei de revisão: (1) a
incoerência do regime dualista e (2) a reduzida praticabilidade deste regime
até agora adoptado.
Entre os críticos merece referência Vasco Pereira da
Silva, sendo que a sua crítica assenta no facto de que “ ela [dicotomia] não é
justificada por verdadeiras razões de natureza processual mas antes tem por
base ‘pré‑conceitos’ de natureza substantiva”[iv],
motivados pela ideia de que o exercício do poder administrativo justifica
regras excepcionais, um evidente efeito dos traumas de infância do contencioso
administrativo. A manutenção da evidência desses traumas nem teria razão
aparente uma vez afastadas as limitações dos poderes de pronúncia do juiz
perante actos administrativos, todavia, ainda que o contencioso administrativo
tenha passado a ser de plena jurisdição, só agora se assiste ao esbater do
modelo dicotómico.
Outro crítico do modelo consagrado no CPTA é Mário Aroso
de Almeida que faz referência, desde logo, ao facto de existirem normas que não
são coerentes com a escolha dicotómica. Na mesma linha, Rui Manchete, alude à
ambiguidade da distinção e até ao nível dos pressupostos processuais, apontando
que seria “preferível de jure condendo
estabelecer um processo administrativo declarativo comum próximo do existente
no direito processual civil e novos processos especiais, a acrescer aos
existentes, concretizado uma tutela diferenciada consoante as especificidades
do respetivo objeto”[v].
Neste seguimento compreende-se a adopção no nCPTA de uma
única forma de processo, a acção administrativa, sendo que a ela se reconduzem
todos os processos não urgentes do contencioso administrativo. Esta acção
administrativa passa pela sedimentação do regime da acção administrativa
especial adaptado em funções das alterações do CPC. Em marcha de processo são
consagradas diversas soluções do CPC, todavia estas são consagradas
apresentando especificidades de regime exigidas pela dinâmica do contencioso
administrativo. Neste contexto de importação de normas do CPC, relativas à
marcha do processo, para o nCPTA relevam, a título exemplificativo, os arts.
78º-A (relativo à identificação dos contrainteressados), 83º-A (relativo à
reconvenção), 85º-A (relativo à réplica e tréplica), 87º-A (relativo à
audiência prévia), 87º-B (relativo à não realização da audiência prévia), 87º-C
(relativo à tentativa de conciliação e mediação), 89º-A (relativo À alteração
do rol de testemunhas), 91º e 91º-A (relativos à audiência final).
O modelo
constituído pela acção administrativa no nCPTA parece tornar “oportuno retomar
[o] debate para averiguar qual o critério acolhido pelo [nCPTA] neste domínio,
bem como se todas as soluções contempladas pelo Legislador serão consentâneas
com o mesmo e quais as (eventuais) implicações de tal critério na interpretação
(e aplicação) das normas processuais”. Aqui terá relevo ponderar os arts. 35º e
36º nCPTA, é certo, mas também ´inovador art. 3º/3 que passa a dispor que os
“tribunais administrativos asseguram os meios declarativos urgentes necessários
à obtenção da tutela adequada em situações de constrangimento temporal, assim
como os meios cautelares destinados à salvaguarda da utilidade das sentenças a
proferir nos processos declarativos”.
Espera-se, deste modo, ultrapassar o sistema que parecia “constituir
uma deseconomia ao não favorecer a justiça célere que o desenvolvimento das
economias pressupõe”[vi],
e garantir um “reforço significativo do princípio da tutela jurisdicional
efetiva consagrado no n.º4 do artigo 268º da Constituição da República
Portuguesa”[vii].
[i] O comentário será redigido com a
ortografia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, todavia
as citações respeitarão a opção do autor citado.
[ii] ANA SOFIA FIRMINO, O fim do regime dualista das ações administrativas no Anteprojecto de
revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, em O Anteprojecto de Revisão do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais em Debate, Lisboa, 2014, p. 15.
[iii] A título de
exemplo, atente-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 12
de Julho de 2012, Proc. n.º 8510/12.
[iv] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2.ª
edição, Coimbra, Almedina, 2009, p. 246.
[v] RUI MANCHETE, citado por ANA
SOFIA FIRMINO, O fim do regime
dualista das ações administrativas no Anteprojecto de revisão do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos, em O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate,
Lisboa, 2014, p. 20.
[vi] JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, O fim do dualismo das formas do processo
declarativo não urgente e outros (previsíveis) impactos da reforma da ação administrativa,
em O Anteprojecto de Revisão do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais em Debate, Lisboa, 2014, p. 40.
[vii] ANA SOFIA FIRMINO, O fim do regime dualista das ações administrativas no Anteprojecto de
revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, em O Anteprojecto de Revisão do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais em Debate, Lisboa, 2014, p. 33.
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