segunda-feira, 14 de dezembro de 2015



A acção administrativa “única” e o fim da dicotomia acção comum-acção especial[i]

O regime que vigorou até à entrada em vigor do novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante nCPTA) resultava da opção pelo Legislador, na reforma de 2002/2004, por um modelo dualista que distinguia entre acção administrativa comum (art. 37º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, doravante CPTA) e acção administrativa especial (art. 46.º CPTA).
Este modelo havia sido transposto para o CPTA com base na solução que vigorava e que fazia a distinção entre recurso contencioso de anulação (regulado então pela com alterações Lei de Processo nos Tribunais Administrativos – Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho) e acções sobre contratos e de responsabilidade civil (reguladas pelo regime do Código de Processo Civil – doravante CPC).
A distinção entre as acções consagradas no CPTA parecia, para a doutrina, ter por base a existência, ou não, de uma relação jurídica paritária entre os sujeitos envolvidos no processo, ou seja, o critério de distinção passava por se estar, ou não, perante a prática ou omissão de manifestações de ius imperii por parte da administração. Assim, parece ser possível concluir que, tendencialmente, “e em termos muito genéricos, pode dizer-se que, de acordo com o elenco das formas de processos previsto […] no CPTA, quando sejam deduzidas pretensões relacionadas com o exercício de poderes de autoridade (atos administrativos e normas regulamentares), o processo deverá seguir a forma da ação administrativa especial; quando assim não aconteça, o processo seguirá a forma da ação administrativa comum”[ii]. Também a jurisprudência, relativamente à distinção plasmada no CPTA, parecia dar relevância ao critério de saber se o processo dizia respeito, ou não, ao exercício de poderes de autoridade pela Administração[iii].
As críticas na doutrina a esta transposição, aquando da reforma de 2002/2004, amontoaram-se, sendo em virtude destas que assistimos a uma nova reforma em que se justifica o abandono da dicotomia por duas ordens de razões, segundo o preâmbulo da proposta de decreto-lei de revisão: (1) a incoerência do regime dualista e (2) a reduzida praticabilidade deste regime até agora adoptado.
Entre os críticos merece referência Vasco Pereira da Silva, sendo que a sua crítica assenta no facto de que “ ela [dicotomia] não é justificada por verdadeiras razões de natureza processual mas antes tem por base ‘pré‑conceitos’ de natureza substantiva”[iv], motivados pela ideia de que o exercício do poder administrativo justifica regras excepcionais, um evidente efeito dos traumas de infância do contencioso administrativo. A manutenção da evidência desses traumas nem teria razão aparente uma vez afastadas as limitações dos poderes de pronúncia do juiz perante actos administrativos, todavia, ainda que o contencioso administrativo tenha passado a ser de plena jurisdição, só agora se assiste ao esbater do modelo dicotómico.
Outro crítico do modelo consagrado no CPTA é Mário Aroso de Almeida que faz referência, desde logo, ao facto de existirem normas que não são coerentes com a escolha dicotómica. Na mesma linha, Rui Manchete, alude à ambiguidade da distinção e até ao nível dos pressupostos processuais, apontando que seria “preferível de jure condendo estabelecer um processo administrativo declarativo comum próximo do existente no direito processual civil e novos processos especiais, a acrescer aos existentes, concretizado uma tutela diferenciada consoante as especificidades do respetivo objeto”[v].
Neste seguimento compreende-se a adopção no nCPTA de uma única forma de processo, a acção administrativa, sendo que a ela se reconduzem todos os processos não urgentes do contencioso administrativo. Esta acção administrativa passa pela sedimentação do regime da acção administrativa especial adaptado em funções das alterações do CPC. Em marcha de processo são consagradas diversas soluções do CPC, todavia estas são consagradas apresentando especificidades de regime exigidas pela dinâmica do contencioso administrativo. Neste contexto de importação de normas do CPC, relativas à marcha do processo, para o nCPTA relevam, a título exemplificativo, os arts. 78º-A (relativo à identificação dos contrainteressados), 83º-A (relativo à reconvenção), 85º-A (relativo à réplica e tréplica), 87º-A (relativo à audiência prévia), 87º-B (relativo à não realização da audiência prévia), 87º-C (relativo à tentativa de conciliação e mediação), 89º-A (relativo À alteração do rol de testemunhas), 91º e 91º-A (relativos à audiência final).
 O modelo constituído pela acção administrativa no nCPTA parece tornar “oportuno retomar [o] debate para averiguar qual o critério acolhido pelo [nCPTA] neste domínio, bem como se todas as soluções contempladas pelo Legislador serão consentâneas com o mesmo e quais as (eventuais) implicações de tal critério na interpretação (e aplicação) das normas processuais”. Aqui terá relevo ponderar os arts. 35º e 36º nCPTA, é certo, mas também ´inovador art. 3º/3 que passa a dispor que os “tribunais administrativos asseguram os meios declarativos urgentes necessários à obtenção da tutela adequada em situações de constrangimento temporal, assim como os meios cautelares destinados à salvaguarda da utilidade das sentenças a proferir nos processos declarativos”.
Espera-se, deste modo, ultrapassar o sistema que parecia “constituir uma deseconomia ao não favorecer a justiça célere que o desenvolvimento das economias pressupõe”[vi], e garantir um “reforço significativo do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no n.º4 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa”[vii].


[i]  O comentário será redigido com a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, todavia as citações respeitarão a opção do autor citado.
[ii] ANA SOFIA FIRMINO, O fim do regime dualista das ações administrativas no Anteprojecto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, em O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate, Lisboa, 2014, p. 15.
[iii] A título de exemplo, atente-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 12 de Julho de 2012, Proc. n.º 8510/12.
[iv] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2009, p. 246.
[v] RUI MANCHETE, citado por ANA SOFIA FIRMINO, O fim do regime dualista das ações administrativas no Anteprojecto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, em O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate, Lisboa, 2014, p. 20.
[vi] JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, O fim do dualismo das formas do processo declarativo não urgente e outros (previsíveis) impactos da reforma da ação administrativa, em O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate, Lisboa, 2014, p. 40.
[vii] ANA SOFIA FIRMINO, O fim do regime dualista das ações administrativas no Anteprojecto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, em O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate, Lisboa, 2014, p. 33.

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