segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Providência Cautelar: A Eliminação do Critério da Evidência da Procedência da Pretensão Formulada ou a Formular na Ação Principal

            No novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos (de ora em diante, CPTA), são alterados os critérios gerais de concessão. Nomeadamente, na eliminação do critério vertido pelo artigo 120.º/1 al. A) do CPTA a) “Quando seja evidente a procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal, designadamente por estar em causa a impugnação de acto manifestamente ilegal, de acto de aplicação de norma já anteriormente anulada ou de acto idêntico a outro já anteriormente anulado ou declarado nulo ou inexistente”,  que conferia uma relação fulcral e exclusiva ao fumus boni iuris[1]. A eliminação do critério justificou-se como uma medida destinada a “promover a agilidade dos processos cautelares, evitando a respetiva sobrecarga com a produção desproporcionada e injustificada de prova” e, noutro prisma, por ter sido “objeto de críticas e de uma aplicação jurisprudencial muito restritiva”[2]. Ana Gouveia Martins refere que se tem assistido a um “fenómeno de ‘cautelarização’ da justiça administrativa”, acabando por ser recorrente que as petições iniciais apresentadas no processo principal constituam simples reprodução do requerimento cautelar, apresentando por vezes menos extensão, porque se suprimia a parte que dizia respeito aos critérios do periculum em mora e da ponderação de interesses, assim que apenas se mantinham as considerações de Direito relativas ao critério fumus boni iuris, supra mencionado.
            As alíneas b) e c) do n.º1 do 120.º CPTA previam a alegação autónoma da verificação de uma situação de periculum em mora e também do juízo de ponderação dos diversos interesses em presença, “Nas situações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior, a adopção da providência ou das providências será recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados, em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências” [3] porém, excluía da alegação autónoma o critério da alínea a) do artigo 120.º/1 CPTA. O que se configurava, mais uma vez nas palavras de Ana Gouveia Martins, numa “válvula de escape do sistema destinada a flexibilizar e facilitar a concessão de providência cautelar sempre que, mais do que provável, a procedência da pretensão formulada no processo principal se revelasse ostensiva”.[4]  
Para além desta exceção, haveria sempre que apreciar a verificação dos três requisitos dos quais ficaria dependente a concessão da providência cautelar. Dependendo se fossem providências cautelares conservatórias - que se destinam a manter um status quo, isto é, pretendem manter ou preservar a situação de facto existente - ou antecipatórias - que são aquelas que visam prevenir um dano, obtendo antecipadamente a disponibilidade de um direito ou de gozo de um benefício a que o particular pretende ter direito, mas que lhe é negado- estabelecia-se uma graduação diversa da relevância da aparência do bom direito. Não fazia sentido pois implicava menos agilidade do processo cautelar o facto de os requerentes, em sede de propugnar a atribuição de uma providência cautelar de natureza meramente conservatória, na formulação negativa do fumus boni iuris, em que se afigurava apenas ser relevante a falta de fundamentação da pretensão formulada ou a formular no processo principal ou a existência de circunstâncias que obstavam o conhecimento de mérito das questões, exigir a demonstração de evidência da procedência da pretensão formulada através de detalhados argumentos legais de fundamentação acompanhados de numerosas citações doutrinais e jurisprudenciais que acabavam por esgotar as questões de direito e de facto numa lógica que se afigurava contrária e, até mesmo, incompatível, com a simplicidade e celeridade que caracterizam a tutela cautelar.
            No entanto, a escolha feita pelo legislador para alínea a) do artigo 120.º /1 CPTA, que consagra o critério da evidência da aparência do bom direito, foi criticada por alguma doutrina devido ao facto de se considerar que não se podia conceder a providência cautelar sem que, para isso, se exigisse cumulativamente a existência de uma situação de perigo na mora porque desnaturalizaria a figura da tutela cautelar pois o perigo de retardamento ou de infrutuosidade da tutela constituíam a razão de ser do instituto. Tiago Amorim considera que é sempre exigível a verificação de perigo na mora para não se cair numa modalidade de tutela sumária[5]. Numa outra posição, Vieira de Andrade dita que “o tribunal está dispensado de fundamentar a sua decisão na comprovação desta perigosidade específica – no entanto, mesmo nestas situações o perigo releva, na medida em que a providência só pode ser pedida e concedida quando haja um interesse em agir que se manifeste no fundamento do pedido, embora baste aí provar que assim se assegura alguma utilidade À sentença”[6]. Já Mário Aroso de Almeida, em sentido contrário, manifesta-se contra estas interpretações que limitam o critério consagrado no artigo 120.º/1 a) do CPTA, porém, considera que a dispensa da necessidade de verificação do perigo na mora implica que se atribua, então, à tutela concedida a natureza de uma tutela sumária, acessória a um processo principal ou precária.[7]
            Consequentemente, a aplicação jurisprudencial o preceito mostrou-se restritiva sendo que se prejudicou a operacionalidade do critério no domínio em que lhe competia atuar. Neste sentido, Ana Gouveia Martins refere que, numa primeira aceção, se firmou uma “orientação jurisprudencial no sentido de que «a qualidade de cognição exigida pelo artigo 120.º/1 alínea a) do CPTA para o fumus boni iuris traduzida na expressão ‘evidente procedência da pretensão formulada’ mede-se pelo caráter incontroverso [que não admita dúvidas], patente [posto que visível sem mais indagações] e irrefragável [irrecusável, incontestável] do presumível conteúdo favorável da sentença de mérito em causa principal, derivado da cognição sumária das circunstâncias de facto e consequente juízo subsuntivo na lei aplicável, efectuados no processo cautelar»[8]. Assim que, para se achar verificado o critério de evidência seria indispensável que “as ilegalidades imputadas ao ato sejam notórias e visíveis sem necessidade de qualquer elaborada indagação”[9] de facto ou de direito para não se tratar de “uma evidência resultante de demonstração, antes contestável a olho nu, de tal forma que o mero juiz célere e sumário do julgador cautelar possa levar a uma certeza com evidentes repercussões no julgamento da causa principal”[10]. Esta posição peca por se afigurar, muitas vezes, e ainda que a ilegalidade seja manifesta, imprescindível o maior enquadramento factual e jurídico no requerimento cautelar, ainda que seja evidente a procedência da pretensão a formular.
            Outro entendimento jurisprudencial foi aquele que quase neutralizou qualquer efeito útil ao critério do 120.º/2 alínea a) e que ditava que só seriam relevantes situações de nulidade e não de anulabilidade e que não relevaria, da mesma forma, a procedência da pretensão principal que fosse fundada em vícios formais e procedimentais, porque nestes casos a renovação do ato seria sempre possível. E mesmo nos casos em que a evidência se alicerçava em vícios de fundo considerou-se que nunca poderia ser afirmada a evidência da pretensão a formular, já que nos artigos 45.º e 102.º do CPTA se previa a impossibilidade e razões de interesse público poderiam obstar sempre à satisfação dos interesses do autor. A tendência foi a de revogação em sede de recurso da aplicação do preceito ainda que, em sede de 1º Instância, fosse decretada a providência cautelar.
Por isto tudo, com a reforma do CPTA o critério da alínea a) do artigo 120.º do CPTA foi excluído e consta do novo diploma apenas aqueles critérios gerais preceituados nas alíneas c) e d) do mesmo artigo.


Inês Duarte Tavares
nº 21890
sb:1

[1] De bom direito; de aparência de bom direito;
[2] Ponto 76, artigo 2.º da proposta de Lei de Autorização Legislativa
[3] Martins, Ana Gouveia, “Os Critérios de Atribuição das Providências Cautelares na Reforma do Código de Processo nos Tribunais Administrativos” in Cadernos de Justiça Administrativa, (CJA) n.º 106, 2014 , p-59
[4] Martins, Ana Gouveia, “Os Critérios de Atribuição das Providências Cautelares na Reforma do Código de Processo nos Tribunais Administrativos” in Cadernos de Justiça Administrativa, (CJA) n.º 106, 2014, p-59, parágrafo 5;
[5] Amorim, Tiago, “As Providências Cautelares do CPTA: Um Primeiro Balanço” in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 47, 2004, p. 41;
[6] Andrade, Vieira de, “A Justiça Administrativa (Lições), 11.º edição, Almedina;
[7] Almeida, Mário de Aroso, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010;
[8] Cfr. Acórdão (AC) do Tribunal Central Administrativo (TCA) Sul de 28/06/2007. No mesmo sentido Cfr, AC. Do TCA Sul de 12/09/2013;
[9] CFR, Ac. Do Supremo Tribunal Administrativo (STA) (Pleno) de 11/12/2007;
[10] Cfr. Ac. Do TCA Norte (1.ª Seção - CA) de 11/12/2008, P. 1038/08.5BEBRG;

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