domingo, 13 de dezembro de 2015

As inovações (e as não inovações) no contencioso pré-contratual

Com a reforma do Contencioso Administrativo de 2002/2004, em que esteve patente o “alargamento do âmbito de jurisdição administrativa  ao universo das relações jurídicas administrativas e fiscais (concretizando assim o paradigma constitucional, constante do artigo 212º, nº3, da Constituição)” extinguiu-se os sintomas de “dualidade esquizofrénica”, consagrando-se “uma nova unidade jurisdicional”.[i] Unidade essa marcada pela transposição de fontes comunitárias no âmbito da Contratação Pública.

O Projecto de Revisão do CPTA suscitou grandes alterações ao regime do contencioso pré-contratual (consagrado nos arts.100º a 103º do CPTA), tendo por base a influência do Direito da União Europeia.  Essas alterações visavam, algumas,  “harmonizar o regime contencioso ao regime substantivo” e, outras, “esclarecer aspectos discutidos na doutrina e jurisprudência”.
Debruçando-nos sobre as inovações propriamente ditas, iremos analisar os matérias sobre as quais estas incidiram, nomeadamente: o Âmbito; a Legitimidade; os Pedidos; a Tramitação; os Prazos; os Mecanismos destinados a assegurar a utilidade da sentença; e , os Mecanismos de reparação caso a sentença tenha perdido efeito útil.

Quanto ao Âmbito, verificamos que o contencioso pré-contratual passou a debruçar-se sobre as “acções de impugnação ou de condenação à prática de actos administrativos relativos à formação de contratos de empreitada de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de aquisição ou locação de bens imóveis e de aquisição de serviços” (art.100º/nº1). Verifica-se aqui um “aperfeiçoamento formal” quanto à terminologia dos contratos em questão (anteriormente a terminologia utilizada era: “contratos de prestação de serviços” e “contratos de fornecimento de bens”). Passa-se, deste modo, a abranger quase todos os contratos sujeitos à matéria procedimental que consta da Parte II do Código dos Contratos Públicos.

Relativamente, à Legitimidade, dispõe o art.101º que “os processos de contencioso pré-contratual devem ser intentados (...), por qualquer pessoa ou entidade com legitimidade nos termos gerais” pelo que temos que aludir ao previsto no art.55º/nº1 do CPTA (quando se tratar de um pedido de impugnação do acto) e ao previsto no art.68º/nº1 do CPTA (quando se tratar de um pedido de condenação à prática do acto devido). Até aqui não se verifica nenhuma inovação quanto à legitimidade. A inovação surge relativamente a legitimidade para impugnar normas procedimentais, sendo que o art.103/nº2 do CPTA dispõe que “O pedido de declaração de ilegalidade pode ser deduzido por quem participe ou tenha interesse em participar no procedimento em causa, podendo ser cumulado com o pedido de impugnação de ato administrativo de aplicação das determinações contidas nos referidos documentos”. Antes dessa alteração a doutrina, na falta deste preceito a regular a legitimidade para impugnar normas em sede de contencioso pré-contratual, entendia que a legitimidade para impugnar actos administrativos era igual para impugnar normas; não havendo, assim, distinção, em termos de legitimidade, quanto ao objecto. Esta solução em introduzir, deste modo, uma “veia dualista” no contencioso pré-contratual, o que tem sido criticado por parte da doutrina; que defende que tal solução pode levar a “instrumentalizações do regime do contencioso” e que “a opção mais correcta teria sido a de reforçar os mecanismos sancionatórios contra eventuais abusos das partes, e não a de tornar o requisito da legitimidade mais exigente”. [ii]

No que diz respeito aos Pedidos, o contencioso pré-contratual passou a ser um processo “de impugnação ou de condenação à prática de actos administrativos”, como podemos verificar art.100º/nº1 do CPTA. Anteriormente o contencioso pré-contratual assentava  num “processo de cariz essencialmente impugnatório”.
 Verificamos que, o CPTA passou a consagrar expressamente no seu art.103º/nº2 do CPTA que “o pedido de declaração de ilegalidade pode ser deduzido por quem participe ou tenha interesse em participar no procedimento em causa, podendo ser cumulado com o pedido de impugnação de ato administrativo de aplicação das determinações contidas nos referidos documentos”, sendo aí patente a possibilidade de cumulação de pedidos. Não se trata propriamente de uma inovação visto a doutrina e a jurisprudência, atendendo ao Princípio Constitucional e Legal da Tutela Jurisdicional Efectiva (art.20º/nº1 e art.268º/nº4 da CRP; e art.2º do CPTA), já terem admitido a cumulação de pedidos de condenação e de outro tipos de pedidos. [iii]
É de salientar ainda, o facto de o CPTA admitir, expressamente, no nº 4 do art.103º a “possibilidade da impugnação, nos termos gerais, dos regulamentos que tenham por objeto conformar mais do que um procedimento de formação de contratos”. À alusão a aos termos gerais da impugnação, parece neste caso fazer “uma remissão para o regime geral de impugnação de normas administrativas previsto nos artigos 73º a 77º do CPTA” como defende o MARCO CALDEIRA. [iv]

No que respeita a Tramitação, esta encontra-se prevista no art.102º do CPTA, que no seu nº1 remete a tramitação dos processo de contencioso pré-contratual para a “tramitação estabelecida no capítulo III do título II” (salvo nos caso apresentados nos números seguintes do preceito). A inovação aqui se que salienta é a substituição do regime dualista pelo regime monista pois o anterior regime remetia o processo contencioso contratual para o regime da acção administrativa especial, e, o presente regime faz a remissão para o regime monista da acção administrativa.
Outra mudança que se verificou no âmbito da tramitação do contencioso pré-contratual é a “desautonomização preceitual” da realização da audiência pública, que outrora esteve consagrada no art.103º (do antigo CPTA) e agora encontra-se prevista no art.102º/nº5 (do novo CPTA).
De resto, a tramitação do contencioso pré-contratual não sofreu mais nenhuma inovação da qual se possa dar especial relevo.

No que concerne aos Prazos, o CPTA continua a estipular que os processos de contencioso pré-contratual devem ser intentados no prazo de 1 mês (art.101º do CPTA) Contudo já não faz menção ao termo inicial da contagem do prazo mas faz remissão expressa  aos arts.58º/nº3, 59º e 60º do CPTA. MARCO CALDEIRA defende que “ao manter a fixação do prazo de um mês, (…), sem se especificar se tal prazo se aplica também (ou não) aos actos nulos, o Projecto mantém assim a incerteza, ficando o intérprete sem saber se os autores entenderam que as dúvidas não se colocavam (e que, portanto, não careciam de esclarecimento) ou se, pelo contrário, nem sequer se aperceberam desta questão e se, portanto, a omissão do Projecto não de pode extrair qualquer conclusão segura quanto à opção legislativa. Acrescenta por isso que “ não se configurando plausível que os autores do Projecto ignorem este problema, parece que o seu silêncio deverá ser interpretado no sentido de sujeitar a impugnação dos actos nulos ao prazo de um mês, o que mostra bastante criticável, não só pelas consequências de tal solução, mas também porque a mesma sempre deveria ser expressamente afirmada pelo legislador”. [v]
Ainda relativamente, aos Prazos, o art.103º/nº3 do CPTA estipula que “o pedido de declaração de ilegalidade pode ser deduzido durante a pendência do procedimento a que os documentos em causa se referem”, o que traduz-se na situação de, em sede judicial, a ilegalidade de qualquer norma do procedimento contencioso pré-contratual poder ser posta em causa enquanto o mesmo procedimento contencioso pré-contratual não tiver terminado.

Debruçando agora sobre os Mecanismos destinados a assegurar a utilidade da sentença, é importante salientar que foi nesta matéria que se verificou maiores inovações no seio do contencioso pré-contratual, devido a transposição da Directiva nº2007/66/CE.
Surgiu, deste modo, o art.103º-A do CPTA, que estipula a suspensão automática dos efeitos dos actos de adjudicação (impugnados no âmbito do contencioso pré-contratual urgente) ou a execução do contrato (caso este já estiver sido celebrado). Esta consagração legal destina-se, expressamente, à impugnação da decisão de impugnação. Havendo, no entanto, a faculdade de, paralelamente, adoptar medidas provisórias sobre o qual dispõe o art.103º-B do CPTA (outra inovação no âmbito do contencioso pré-contratual). Deste modo, o autor da acção principal (obstante do que resultar no plano das medidas provisórias) conta com vários mecanismos para “paralisar o procedimento pré-contratual e suspender a eficácia do acto impugnado”, mecanismos esses que constituem “autênticos incidentes processuais” como podemos verificar no nº2 do art.103º-B do CPTA.
Existe neste plano exercício do contraditório por parte da entidade adjudicante e dos contra-interessados (art.103º-A/nº2 e nº3 e art.103º-B/nº2 do CPTA). Sendo que recai sobre o Tribunal o dever de analisar as alegações destes sujeitos e ponderar os inconvenientes que cada uma das soluções possíveis pode trazer para os interesses das partes envolvidas, tendo em conta os critérios de periculum in mora e ponderação de interesses.  O que acaba por trazer para o processo principal os problemas próprios dos processos cautelares e fazendo depender a suspensão de um juízo de ponderação de interesses, como defende MARCO CALDEIRA. [vi]

Para finalizar, versando sobre os Mecanismos de reparação caso a sentença tenha perdido efeito útil, estes assumem importância quando “já não é possível reconstituir o ordenamento jurídico e a esfera jurídica do autor como se o acto ilegal e lesivo  nunca tivesse sido praticado. O art.102º/nº6 do CPTA, quanto a esta matéria, remete para o regime dos arts.45º e 45º-A do CPTA, devendo-se respeitar/preencher os respetivos pressupostos. Salienta-se deste modo o art.45º/nº1/alíneas a) e b); o art.45º-A/nº1/alíneas a) e b), nº2 e nº3; e, o art.102º/nº7, que apontam todos para a convolação do processo (anteriormente, designada como “modificação objectiva da instância).

Edbela Monteiro
Aluna nº18531


BIBLIOGRAFIA
Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição actualizada, Almedina, 2009

Gomes, Carla Amado; Neves, Ana Fernanda; Serrão, Tiago (COORD.), O Anteprojecto de Revisão do Código do Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate. AAFDL, 2014

Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Reimpressão, Almeida, 2012





[i] Vasco Pereira da Silva in O Contencioso Administrativo da Psicanálise, 2ª Edição actualizada, Almedina, 2009, pág.488
[ii] Marco Caldeira in O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate, AAFDL, 2014, pág.165
[iii] Neste sentido Pedro Gonçalves, Maria João Estorninho e Marco Caldeira
[iv] Marco Caldeira in O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate, AAFDL, 2014, pág.163
[v] Marco Caldeira in O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate, AAFDL, 2014, págs.157 e 158
[vi] Marco Caldeira in O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate, AAFDL, 2014, pág.175

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