segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Intervenção do Ministério Público no Contencioso Administrativo


O Ministério Público é um órgão constitucional da administração da justiça, detentor de um Estatuto próprio, que forma um grupo de magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados (artigo 219º/4 da Constituição da República Portuguesa – doravante “CRP”- e artigo 76º/1 do Estatuto), dotado de autonomia perante o Governo (art.2º do Estatuto) e a magistratura judicial (artigo 75º/1), cuja gestão e disciplina cabe à Procuradoria-Geral da República, que é presidida pelo Procurador-Geral e inclui o Conselho Superior do Ministério Público (artigos 219, nº2, 4 e 5 e 22º da CRP).
O Ministério Público, tal como evidenciado por Gomes Canotilho e Vital Moreira, apresenta-se como «um órgão do poder judicial ao qual são cometidas funções de representação do Estado, do exercício da acção penal, da defesa da legalidade democrática e dos demais interesses determinados por lei». Segundo os mesmos autores, o Ministério Público é configurado no seio da CRP como um órgão independente, inserido na organização judicial, beneficiando de um Estatuto próprio e autonomia institucional. Estamos perante um órgão autónomo da Administração da Justiça vocacionado para a realização da justiça e promoção e defesa da legalidade. No Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante “ETAF”), nos artigos 51ºe e 52º, são enunciadas as funções genéricas do Ministério Público na esteira do contencioso administrativo, bem como, a respectiva organização junto dos tribunais administrativos e fiscais.

Breves notas históricas

O Ministério Público foi inserido no Contencioso Administrativo por via do Decreto nº24, 16 de Maio, em 1832 de forma a consubstanciar uma actividade junto dos Tribunais Comuns numa actuação focada na exposição escrita de opiniões fundamentadas acerca da matéria objecto do processo em causa.
Mais tarde, em 1869, foi concretizada uma alteração no plano orgânico e funcional: o Chefe do Ministério Público passa a ser o Procurador-geral da Coroa e da Fazenda, sendo apoiado nos recursos administrativos de decisões dos ministros por advogados do Governo. Com a aprovação do Código Administrativo de 1896 ficou estipulado que as funções do Ministério Público nos Tribunais administrativos de distrito eram desempenhadas pelo secretário-geral do governo civil ao qual foram incumbidos poderes de acção pública contra deliberações ilegais das Câmaras Municipais, juntas de paróquias e irmandades, assim como, associações ou institutos de piedade. As suas funções apontavam também para uma intervenção no contencioso administrativo, mesmo em causas em que não fosse parte, de modo a promover a defesa da legalidade. Tal como descrevia o art.359º do código supra mencionado: “ao Ministério público incumbe pugnar pelos justos e bem entendidos interesses da administração e da fazenda pública, declarando sempre nas suas respostas e promoções o direito e a lei em que se firma”.
Nas palavras de Sérvulo Correia, este instituto apresentava uma certa complexidade, na medida em que, em função dos graus de jurisdição, assistíamos a um dualismo orgânico: de um lado, agentes provindos directamente da Administração, do outro magistrados inseridos num corpo especializado e hierarquizado; por outro lado, uma certa indefinição no que à natureza dos interesses protegidos dizia respeito, isto porque, como apontado pelo ilustre professor, a qualificação dos interesses da administração como justos e bem entendidos aponta, no entanto, no sentido de que ao Ministério Público não cumpria a defesa de condutas ou pretensões da Administração, mas apenas aquelas que ultrapassassem os limites da legalidade. Feita a ponderação objectiva dos interesses a prosseguir, a defesa parecia incidir mais na legalidade administrativa do que no patrocínio da pretensão da Administração.
Ora, até à reforma de 2002/2003, podemos caracterizar o Ministério Público pelo seguinte:

·   Unidade orgânica – uma vez que agem pelo MP apenas elementos da magistratura (art. 4º/1 e 74º do EMP) – abandono do dualismo orgânico no desempenho de funções;
·   Multiplicidade de funções – o MP pode promover intervenção na acção pública; coadjuvar o tribunal na realização do direito; e, por fim, exercer o patrocínio judiciário do Estado e de outras pessoas representadas por imperativo legal;
·   Diferenciação dos interesses públicos: interesse público é um interesse em sentido amplo.


O Ministério Público nos dias de hoje

Actualmente podemos sistematizar os poderes do MP, no plano do contencioso administrativo, em três grupos:

§   Poderes de representação de outros sujeitos processuais;
§   Poderes de iniciativa processual em nome próprio (acção popular e acção pública);
§   Poderes de intervenção em processos intentados por outros sujeitos processuais;

Ora vejamos:

·  Poderes de representação

Neste capítulo a questão que se levanta prende-se com a delimitação do âmbito de representação das pessoas colectivas públicas que incumbe ao MP por confronto entre o art.52º do ETAF e a delimitação das atribuições pelo Estatuto, no qual a disposição do art.3º estabelece a competência para representar “o Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta”, bem como, “exercer o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de carácter social”. Suscita-se, assim, a dúvida sobre se a norma do ETAF, por ser mais restrita, conduziria a uma derrogação para o Contencioso Administrativo da definição de poderes de intervenção processual do MP, dado que esta última prevê a representação do Estado e aquela, para além do Estado, estende o plano de representação (art3º do EMP). Ora, na opinião do professor Mário Aroso de Almeida, a circunscrição evidenciada pelo artigo 52º aponta no sentido de excluir a actuação em representação das Regiões Autónomas e Autarquias Locais. Por outro lado, Leonor Rosário Mesquita, entende que a intervenção do MP em representação processual ou patrocínio de sujeitos processuais goza de maior amplitude do que o âmbito literal do art.52º do ETAF lhe confere. Ou seja, esta modalidade de intervenção não se limita à representação do Estado em sentido estrito, devendo considerar-se que o MP mantém os poderes atribuídos por outros lugares do sistema jurídico. A mesma autora refere ainda que, para esclarecimento de situações como a esplanada, devem distinguir-se os poderes de representação orgânica em relação aos poderes de representação legal e a título de patrocínio.
No que concerne ao Estado, o MP actua como o seu representante orgânico. Por esta razão é o MP o citado em acções em que o Estado seja configurado como parte. Já para as demais pessoas colectivas (Regiões Autónomas e Autarquias Locais) a intervenção do MP procede a título de patrocínio.


·  Legitimidade para a acção popular e para a acção pública

No domínio do novo contencioso administrativo de função subjectivista, a regra da legitimidade activa é a da titularidade da relação jurídica administrativa tal como o autor a configura (art.9º/1 CPTA). No entanto, o CPTA manteve fortes configurações de contencioso objectivo, construindo uma ampla legitimidade ao MP para acção pública e estendendo a legitimidade para a acção popular administrativa.
Enquanto órgão constitucional do Estado a quem compete a defesa da legalidade democrática, ao MP é-lhe permitida uma actuação por iniciativa própria em matéria de dedução de pedidos contra tribunais administrativos. Esta legitimidade não se insere apenas na possibilidade de poder de impugnar actos e pedir ilegalidade de normas, englobando ainda as demais pretensões susceptíveis de serem deduzidas em acção especial, bem como, acções sobre contratos.
Pode o MP impugnar qualquer acto administrativo que tenha por ilegal (art. 55º/1-b CPTA) – Aqui, trata-se de defender o interesse comunitário geral da legalidade administrativa, sem dependência de especiais requisitos, procedendo o MP a uma avaliação discricionária da necessidade de impugnação de actos administrativos ilegais. Por sua vez, a legitimidade para propor acções de condenação à prática de acto devido (art.1 – c) do CPTA), encontra-se condicionada pela situação de que apenas poderá propor acção quando o dever de praticar o acto resulte da lei e em causa esteja a ofensa de um direito fundamental, interesse público ou valores e bens referidos pelo art.9º/2.
No domínio do contencioso de regulamentos, ao MP, por via do art. 73º/3, é atribuída legitimidade para pedir, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das entidades referidas no art.9º/2, a declaração de ilegalidade de normas regulamentares com força obrigatória geral. Na matéria em causa, assistimos a um exercício obrigatório do poder de iniciativa processual do MP, uma vez que este se encontra funcionalmente vinculado a propor a ilegalidade com força obrigatória geral quando tenha conhecimento de três decisões de desaplicação de uma norma regulamentar com fundamento na sua ilegalidade (art.73º/4). Pode ainda o MP, por força do artigo 77º do CPTA, requerer a verificação da omissão de emissão de normas em que a actuação nesse sentido seja imprescindível para dar exequibilidade a actos legislativos necessitados de regulamentação.
Em matéria contratual, o MP goza da já conhecida legitimidade para as acções de impugnação de actos referentes ao procedimento de formação dos contratos (contencioso pré-contratual), e passou a deter legitimidade – agindo em juízo sem necessidade de representar partes contratantes – para acção pública anulatória na qual o objecto é a declaração de invalidade total ou parcial de contratos celebrados pela Administração (art.40/1 –b) do CTPA).
Por outro lado, é conferido ao MP legitimidade para a protecção de interesses difusos, na esteira do artigo 9º/2, por via da chamada acção popular administrativa. A acção popular trata-se do reconhecimento de legitimidade para defesa de certos bens ou valores constitucionalmente protegidos, como é o caso da saúde pública, ambiente, urbanismo, qualidade de vida, património cultural, bens do Estado, das RA e das LA. Ora, atendendo à legitimidade que lhe é conferida na intervenção nas matérias mencionadas, pode o MP interpor qualquer acção administrativa e fazer uso dos meios cautelares.

·  Intervenção do Ministério Público em processos que não seja parte

Apesar de o novo contencioso administrativo ter acentuado a função subjectivista, o CPTA mantém um forte reconhecimento de poderes ao MP em actuar como terceiro imparcial (amicus curiae) por forma a alcançar a justa solução no litígio e em defesa da legalidade administrativa. Entre os mais importantes poderes temos:

·   Promoção de diligências de instrução; emissão de parecer sobre o mérito da causa; suscitação de vícios novos, não arguidos pelo autor nas acções impugnatórias; legitimidade para a prossecução da acção, no exercício da acção pública;
·   Legitimidade para recorrer de quaisquer decisões judiciais proferidas com violação de princípios constitucionais e legais;
·   Emissão de parecer sobre a decisão a proferir nos recursos em que não seja parte


Daqui resulta que ao MP cumpre coadjuvar o Tribunal na prossecução do interesse público e defesa da legalidade, actuando de forma imparcial em todo o processo conduzindo o mesmo a uma solução justa e eficaz com respeito pelos princípios do contencioso.

Conclusões

Do que foi supra exposto podemos retirar que o Ministério Público se afirma como uma figura relevante e imprescindível no quadro de um Estado de Direito Democrático que lhe confere poderes de representação do Estado e lhe incumbe a defesa da legalidade e interesses por lei determinados.

É um órgão que se coloca inteiramente à disposição da protecção de direitos constitucionalmente protegidos, sendo-lhe conferidos amplos poderes de iniciativa no exercício da sua actividade. É nos termos desta ampla atribuição de poderes que me parece pertinente tomar em consideração a crítica do professor Vieira de Andrade, o qual considera que esta diversidade de funções conduz inevitavelmente a problemas suscitados pela atribuição, em certos processos, de uma dualidade interventiva do MP, que tanto actua do lado do Estado (contra acções do particular), como contra o administrado (ao lado dele, ou em vez dele). De modo a evitar contradições e dilemas desnecessários, sustenta o professor que o MP deve destinar-se somente à defesa da legalidade, como órgão auxiliar da justiça administrativa, desligando-se da actuação em representação do Estado-Administração e das Regiões Autónomas e Autarquias Locais. Seria, de facto uma solução que evitaria incompatibilidades e conduziria a uma melhor delimitação do âmbito de actuação do MP.


Bibliografia:
GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Fundamentos da Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 1991
ROSÁRIO MESQUITA, Leonor, A intervenção do Ministério Público no contencioso Administrativo, Estudos em memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra, 2014
SÉRVULO CORREIA, José, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, Vol. I, Coimbra, 2001
VIERA DE ANDRADE, José, A justiça administrativa:lições, Coimbra, Almedina, 2014

Tomás da Cacela da Silva, nº22480

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