O Ministério Público é um órgão
constitucional da administração da justiça, detentor de um Estatuto próprio,
que forma um grupo de magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados
(artigo 219º/4 da Constituição da República Portuguesa – doravante “CRP”- e
artigo 76º/1 do Estatuto), dotado de autonomia perante o Governo (art.2º do
Estatuto) e a magistratura judicial (artigo 75º/1), cuja gestão e disciplina
cabe à Procuradoria-Geral da República, que é presidida pelo Procurador-Geral e
inclui o Conselho Superior do Ministério Público (artigos 219, nº2, 4 e 5 e 22º
da CRP).
O Ministério Público, tal como evidenciado
por Gomes Canotilho e Vital Moreira, apresenta-se como «um órgão do poder
judicial ao qual são cometidas funções de representação do Estado, do exercício
da acção penal, da defesa da legalidade democrática e dos demais interesses
determinados por lei». Segundo os mesmos autores, o Ministério Público é
configurado no seio da CRP como um órgão independente, inserido na organização
judicial, beneficiando de um Estatuto próprio e autonomia institucional.
Estamos perante um órgão autónomo da Administração da Justiça vocacionado para
a realização da justiça e promoção e defesa da legalidade. No Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante “ETAF”), nos artigos 51ºe e 52º,
são enunciadas as funções genéricas do Ministério Público na esteira do
contencioso administrativo, bem como, a respectiva organização junto dos
tribunais administrativos e fiscais.
Breves notas históricas
O Ministério Público foi inserido
no Contencioso Administrativo por via do Decreto nº24, 16 de Maio, em 1832 de
forma a consubstanciar uma actividade junto dos Tribunais Comuns numa actuação
focada na exposição escrita de opiniões fundamentadas acerca da matéria objecto
do processo em causa.
Mais tarde, em 1869, foi
concretizada uma alteração no plano orgânico e funcional: o Chefe do Ministério
Público passa a ser o Procurador-geral da Coroa e da Fazenda, sendo apoiado nos
recursos administrativos de decisões dos ministros por advogados do Governo.
Com a aprovação do Código Administrativo de 1896 ficou estipulado que as
funções do Ministério Público nos Tribunais administrativos de distrito eram
desempenhadas pelo secretário-geral do governo civil ao qual foram incumbidos
poderes de acção pública contra deliberações ilegais das Câmaras Municipais,
juntas de paróquias e irmandades, assim como, associações ou institutos de
piedade. As suas funções apontavam também para uma intervenção no contencioso
administrativo, mesmo em causas em que não fosse parte, de modo a promover a
defesa da legalidade. Tal como descrevia o art.359º do código supra mencionado: “ao Ministério público
incumbe pugnar pelos justos e bem entendidos interesses da administração e da
fazenda pública, declarando sempre nas suas respostas e promoções o direito e a
lei em que se firma”.
Nas palavras de Sérvulo Correia, este
instituto apresentava uma certa complexidade, na medida em que, em função dos
graus de jurisdição, assistíamos a um dualismo orgânico: de um lado, agentes
provindos directamente da Administração, do outro magistrados inseridos num
corpo especializado e hierarquizado; por outro lado, uma certa indefinição no
que à natureza dos interesses protegidos dizia respeito, isto porque, como
apontado pelo ilustre professor, a qualificação dos interesses da administração
como justos e bem entendidos aponta, no entanto, no sentido de que ao
Ministério Público não cumpria a defesa de condutas ou pretensões da
Administração, mas apenas aquelas que ultrapassassem os limites da legalidade.
Feita a ponderação objectiva dos interesses a prosseguir, a defesa parecia
incidir mais na legalidade administrativa do que no patrocínio da pretensão da
Administração.
Ora, até à reforma de 2002/2003,
podemos caracterizar o Ministério Público pelo seguinte:
·
Unidade orgânica – uma vez que agem pelo MP
apenas elementos da magistratura (art. 4º/1 e 74º do EMP) – abandono do
dualismo orgânico no desempenho de funções;
·
Multiplicidade de funções – o MP pode promover
intervenção na acção pública; coadjuvar o tribunal na realização do direito; e,
por fim, exercer o patrocínio judiciário do Estado e de outras pessoas representadas
por imperativo legal;
·
Diferenciação dos interesses públicos: interesse
público é um interesse em sentido amplo.
O Ministério Público nos dias de hoje
Actualmente podemos sistematizar
os poderes do MP, no plano do contencioso administrativo, em três grupos:
§
Poderes de representação de outros sujeitos
processuais;
§
Poderes de iniciativa processual em nome próprio
(acção popular e acção pública);
§
Poderes de intervenção em processos intentados
por outros sujeitos processuais;
Ora vejamos:
· Poderes de
representação
Neste capítulo a questão que se
levanta prende-se com a delimitação do âmbito de representação das pessoas
colectivas públicas que incumbe ao MP por confronto entre o art.52º do ETAF e a
delimitação das atribuições pelo Estatuto, no qual a disposição do art.3º
estabelece a competência para representar “o Estado, as Regiões Autónomas, as
autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta”,
bem como, “exercer o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na
defesa dos seus direitos de carácter social”. Suscita-se, assim, a dúvida sobre
se a norma do ETAF, por ser mais restrita, conduziria a uma derrogação para o
Contencioso Administrativo da definição de poderes de intervenção processual do
MP, dado que esta última prevê a representação do Estado e aquela, para além do
Estado, estende o plano de representação (art3º do EMP). Ora, na opinião do
professor Mário Aroso de Almeida, a circunscrição evidenciada pelo artigo 52º
aponta no sentido de excluir a actuação em representação das Regiões Autónomas
e Autarquias Locais. Por outro lado, Leonor Rosário Mesquita, entende que a intervenção
do MP em representação processual ou patrocínio de sujeitos processuais goza de
maior amplitude do que o âmbito literal do art.52º do ETAF lhe confere. Ou
seja, esta modalidade de intervenção não se limita à representação do Estado em
sentido estrito, devendo considerar-se que o MP mantém os poderes atribuídos
por outros lugares do sistema jurídico. A mesma autora refere ainda que, para
esclarecimento de situações como a esplanada, devem distinguir-se os poderes de
representação orgânica em relação aos poderes de representação legal e a título
de patrocínio.
No que concerne ao Estado, o MP
actua como o seu representante orgânico. Por esta razão é o MP o citado em
acções em que o Estado seja configurado como parte. Já para as demais pessoas
colectivas (Regiões Autónomas e Autarquias Locais) a intervenção do MP procede
a título de patrocínio.
· Legitimidade
para a acção popular e para a acção pública
No domínio do novo contencioso
administrativo de função subjectivista, a regra da legitimidade activa é a da
titularidade da relação jurídica administrativa tal como o autor a configura
(art.9º/1 CPTA). No entanto, o CPTA manteve fortes configurações de contencioso
objectivo, construindo uma ampla legitimidade ao MP para acção pública e
estendendo a legitimidade para a acção popular administrativa.
Enquanto órgão constitucional do
Estado a quem compete a defesa da legalidade democrática, ao MP é-lhe permitida
uma actuação por iniciativa própria em matéria de dedução de pedidos contra
tribunais administrativos. Esta legitimidade não se insere apenas na
possibilidade de poder de impugnar actos e pedir ilegalidade de normas,
englobando ainda as demais pretensões susceptíveis de serem deduzidas em acção
especial, bem como, acções sobre contratos.
Pode o MP impugnar qualquer acto administrativo
que tenha por ilegal (art. 55º/1-b CPTA) – Aqui, trata-se de defender o
interesse comunitário geral da legalidade administrativa, sem dependência de
especiais requisitos, procedendo o MP a uma avaliação discricionária da necessidade
de impugnação de actos administrativos ilegais. Por sua vez, a legitimidade
para propor acções de condenação à prática de acto devido (art.1 – c) do CPTA),
encontra-se condicionada pela situação de que apenas poderá propor acção quando
o dever de praticar o acto resulte da lei e em causa esteja a ofensa de um
direito fundamental, interesse público ou valores e bens referidos pelo
art.9º/2.
No domínio do contencioso de
regulamentos, ao MP, por via do art. 73º/3, é atribuída legitimidade para pedir,
oficiosamente ou a requerimento de qualquer das entidades referidas no
art.9º/2, a declaração de ilegalidade de normas regulamentares com força
obrigatória geral. Na matéria em causa, assistimos a um exercício obrigatório
do poder de iniciativa processual do MP, uma vez que este se encontra funcionalmente
vinculado a propor a ilegalidade com força obrigatória geral quando tenha
conhecimento de três decisões de desaplicação de uma norma regulamentar com
fundamento na sua ilegalidade (art.73º/4). Pode ainda o MP, por força do artigo
77º do CPTA, requerer a verificação da omissão de emissão de normas em que a actuação
nesse sentido seja imprescindível para dar exequibilidade a actos legislativos
necessitados de regulamentação.
Em matéria contratual, o MP goza
da já conhecida legitimidade para as acções de impugnação de actos referentes
ao procedimento de formação dos contratos (contencioso pré-contratual), e
passou a deter legitimidade – agindo em juízo sem necessidade de representar
partes contratantes – para acção pública anulatória na qual o objecto é a
declaração de invalidade total ou parcial de contratos celebrados pela
Administração (art.40/1 –b) do CTPA).
Por outro lado, é conferido ao MP
legitimidade para a protecção de interesses difusos, na esteira do artigo 9º/2,
por via da chamada acção popular administrativa. A acção popular trata-se do
reconhecimento de legitimidade para defesa de certos bens ou valores
constitucionalmente protegidos, como é o caso da saúde pública, ambiente,
urbanismo, qualidade de vida, património cultural, bens do Estado, das RA e das
LA. Ora, atendendo à legitimidade que lhe é conferida na intervenção nas
matérias mencionadas, pode o MP interpor qualquer acção administrativa e fazer
uso dos meios cautelares.
· Intervenção
do Ministério Público em processos que não seja parte
Apesar de o novo contencioso
administrativo ter acentuado a função subjectivista, o CPTA mantém um forte
reconhecimento de poderes ao MP em actuar como terceiro imparcial (amicus
curiae) por forma a alcançar a justa solução no litígio e em defesa da
legalidade administrativa. Entre os mais importantes poderes temos:
·
Promoção de diligências de instrução; emissão de
parecer sobre o mérito da causa; suscitação de vícios novos, não arguidos pelo
autor nas acções impugnatórias; legitimidade para a prossecução da acção, no
exercício da acção pública;
·
Legitimidade para recorrer de quaisquer decisões
judiciais proferidas com violação de princípios constitucionais e legais;
·
Emissão de parecer sobre a decisão a proferir
nos recursos em que não seja parte
Daqui resulta que ao MP cumpre
coadjuvar o Tribunal na prossecução do interesse público e defesa da
legalidade, actuando de forma imparcial em todo o processo conduzindo o mesmo a
uma solução justa e eficaz com respeito pelos princípios do contencioso.
Conclusões
Do que foi supra exposto podemos retirar que o Ministério Público se afirma
como uma figura relevante e imprescindível no quadro de um Estado de Direito
Democrático que lhe confere poderes de representação do Estado e lhe incumbe a
defesa da legalidade e interesses por lei determinados.
É um órgão que se coloca
inteiramente à disposição da protecção de direitos constitucionalmente
protegidos, sendo-lhe conferidos amplos poderes de iniciativa no exercício da
sua actividade. É nos termos desta ampla atribuição de poderes que me parece
pertinente tomar em consideração a crítica do professor Vieira de Andrade, o
qual considera que esta diversidade de funções conduz inevitavelmente a
problemas suscitados pela atribuição, em certos processos, de uma dualidade
interventiva do MP, que tanto actua do lado do Estado (contra acções do
particular), como contra o administrado (ao lado dele, ou em vez dele). De modo
a evitar contradições e dilemas desnecessários, sustenta o professor que o MP
deve destinar-se somente à defesa da legalidade, como órgão auxiliar da justiça
administrativa, desligando-se da actuação em representação do
Estado-Administração e das Regiões Autónomas e Autarquias Locais. Seria, de
facto uma solução que evitaria incompatibilidades e conduziria a uma melhor
delimitação do âmbito de actuação do MP.
Bibliografia:
GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Fundamentos da Constituição,
Coimbra, Coimbra Editora, 1991
ROSÁRIO MESQUITA, Leonor, A intervenção do Ministério
Público no contencioso Administrativo, Estudos em memória do Conselheiro Artur
Maurício, Coimbra, 2014
SÉRVULO CORREIA, José, A reforma do contencioso
administrativo e as funções do Ministério Público, Estudos em homenagem a Cunha
Rodrigues, Vol. I, Coimbra, 2001
VIERA DE ANDRADE, José, A justiça administrativa:lições,
Coimbra, Almedina, 2014
Tomás da Cacela da Silva, nº22480
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