segunda-feira, 14 de dezembro de 2015



O caso decidido - reminiscências de uma infância difícil
            O caso decidido durante muitos anos foi tido como uma espécie de Santo Graal do Contencioso Administrativo.
            A referência não será meramente lírica se atendermos à sua substância, uma vez que o caso decidido consagra a aparente inimpugnabilidade do ato administrativo.
            Tomemos em conta os seus supostos parentes próximos.
            O caso julgado consubstancia uma decisão judicial definitiva proferida num processo, que nas palavras do Professor Rui Medeiros imprime um “carácter solene, sagrado, intangível da sentença”.
            Formará caso julgado a sentença que não admita recurso ou cujo recurso não tenha sido interposto no prazo estipulado.
            Teremos então uma decisão judicial que, em virtude da não impugnação judicial, transita em julgado, tornando-se definitiva, consolidada na ordem jurídica.
            A ideia de segurança jurídica encontrou porto seguro encontrou no Direito Constitucional, que a acolheu na figura do caso julgado relativo a normas inconstitucionais, vertido no art.282º/3 da Constituição da República Portuguesa (CRP), e aplicável quando a matéria subjacente seja penal, disciplinar ou ilícito de mera contra ordenação social, desde que a manutenção do efeito tenha conteúdo mais favorável ao arguido.
            O caso decidido, por sua vez, tem assento legislativo no art.38º/1 e no art.76º/4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativo (CPTA).
            O art.38º/1 do CPTA, prevê os casos excepcionais em que o tribunal pode conhecer, a título apenas incidental, da ilegalidade de um ato administrativo que já não possa ser impugnado, que será aquele que a lei substantiva determine, nomeadamente, o domínio da responsabilidade civil da administração.
            Por sua vez, o art.76º/4 do CPTA, anterior 76º/3, prescreve que a retroactividade da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral não afecta os atos administrativos inimpugnáveis, salvo quando estes respeitem a matéria sancionatória, e cujo conteúdo dos mesmos seja menos favorável ao particular, solução semelhante à constitucionalmente consagrada no art.282º/3 da CRP.
            Importa clarificar o conceito de ato administrativo inimpugnável, que forma caso decidido.
            A doutrina entende por ato administrativo inimpugnável aquele relativamente ao qual se encontra transcorrido o prazo de impugnação contenciosa, consolidando-se assim na ordem jurídica, uma vez que, nas palavras de Freitas do Amaral, não seria compaginável com o princípio da segurança jurídica a ideia de incerteza infinita acerca da legalidade de um ato administrativo.
            Contudo, a benevolente consagração do mesmo gera dúvidas insanáveis, que por certo não são mais do que recalques da infância difícil do Contencioso Administrativo, que nem o seu Crisma conseguiu expurgar.
            E a dúvida mais premente será certamente aquela que não se compadece com o alargamento do art.282º/3 CRP ao caso decidido, quando o próprio preceito constitucional não o prevê.
            A doutrina tem adotado algumas posições acerca da admissibilidade da interpretação operada pelo legislador ordinário.
            O Professor Jorge Miranda admite a interpretação extensiva do art.282º/3 CRP, numa lógica de garantia da estabilidade e segurança jurídica a que aludimos supra, tutelando os interesses legítimos afectados pelo ato inconstitucional pelo crivo do art.282º/4 CRP, posição acompanhada pelo Professor Vitalino Canas.
            O Professor Paulo Otero, por sua vez, entende que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não afecta as situações jurídico-administrativas consolidadas que tenham sido criadas por força de norma, à data, constitucional. O Professor alarga a ressalva aos atos e contratos cujo decurso do prazo de revogação por invalidade já tenha prescrito, o que nos parece excessivo, na medida em que ainda há possibilidade de impugnação contenciosa.
            Os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira entendem que não é possível interpretar extensivamente o preceito de modo a conceder o efeito de caso decidido, pois tal alargamento de meios jurídicos que cristalizam a decisão, por via da sua excecionalidade, tem de estar expressamente prevista. Admitem, contudo, que os atos administrativos inimpugnáveis não podem ser retroativamente afectados por decisão do Tribunal Constitucional.
            Assistimos assim a um fenómeno de jurisdificação de atos inválidos produzidos ao abrigo de norma inconstitucional, aparentemente válida, o que, de certa forma, justifica a emissão dos mesmos, sanando os seus efeitos ilegais, por, a priori, terem sido de fato entendidos como legais.
            A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente no acórdão de 16/04/1981, mostrou-se favorável à admissibilidade da ressalva dos efeitos do caso decidido, confirmando a sua orientação no acórdão uniformizador de jurisprudência de 12/02/1985, em que refere como corolário da segurança jurídica a incontestabilidade do ato.
            Mas não podemos ser meros expectadores de bancada, devendo alertar o árbitro para as faltas graves que estão a ser cometidas.
            Acompanhando a posição do Professor Vasco Pereira da Silva, que idealizou a extinção da figura da inimpugnabilidade de atos administrativos aquando da reforma de 2004, com a adopção, no então art.51º CPTA, da impugnabilidade dos atos administrativos em função da sua eficácia externa e do seu carácter lesivo para os particulares.
            Na sua pura concepção, o Professor admitia que o art.38º do CPTA destinar-se-ia ao impedimento de propositura de ação administrativa especial, configurada à época, o que desencadearia um mero efeito processual, e não uma espécie de convalidação do ato.
            Teceremos breves argumentos que sustentam a nossa posição, e que já haviam sido enunciados pelo Professor Blanco de Morais.
            A adopção do caso decidido é inconstitucional, na medida em que permite a subsistência de atos lesivos de direitos e interesses legitimamente protegidos dos particulares, de forma injustificada, na medida em que a sua legitimidade advém de atos inválidos, possivelmente até desproporcionais ou discriminatórios.
            Parece-nos que viola o princípio da separação de poderes, na medida em que equipara o ato administrativo a uma sentença, confundindo as esferas de manifestação do poder judicial e do poder administrativo.
            Está ainda manifestamente desconforme com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, plasmada no acórdão Küne, de 13/01/2004, processo C-453/00, em que se consagrou o afastamento da ordem jurídica de decisões administrativas ilegais, quando estas violassem o Direito da União Europeia.
            Sabemos que a recuperação dos traumas de infância carece de uma profunda psicanálise, mas temos como certo que o tempo e paciência investidos na mesma foram mais do que suficientes para que sejam reclamados os seus frutos, devendo o legislador, urgentemente, rever o conceito de inimpugnabilidade do ato administrativo que, ainda que pudesse fazer sentido no tempo do ilustre Professor Marcello Caetano, confere uma prerrogativa incompreensível face à intromissão nos direitos e interesses legítimos dos particulares, completamente inaceitável num Estado de Direito Democrático.

Sílvia Ferreira, aluna nº23421
           
           
Bibliografia:
-Esteves, Jorge de Almeida, O caso julgado inconstitucional, Estudo em homenagem ao Professor Doutor José Lebre de Freitas, vol.I, 1ª edição, Coimbra Editora, 2013
-Medeiros, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra Editora, 2007
-Silva, Vasco Pereira, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009
-Canotilho, Gomes e Moreira, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra Editora, 1993
-Morais, Blanco de, Justiça Constitucional, vol.II, 1ª edição, Coimbra Editora, 2002
-Silva, Vasco Pereira da, Revisitando a questão do pretenso “caso decidido” no Direito Constitucional e no Direito Administrativo Português, em Estudos em Homenagem ao Professor Jorge Miranda, vol.III, Coimbra, 2012
-Amaral, Diogo Freitas, Direito Administrativo, vol.IV, 1989

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