O caso decidido - reminiscências de uma infância difícil
O
caso decidido durante muitos anos foi tido como uma espécie de Santo Graal do
Contencioso Administrativo.
A
referência não será meramente lírica se atendermos à sua substância, uma vez
que o caso decidido consagra a aparente inimpugnabilidade do ato
administrativo.
Tomemos
em conta os seus supostos parentes próximos.
O
caso julgado consubstancia uma decisão judicial definitiva proferida num
processo, que nas palavras do Professor Rui Medeiros imprime um “carácter
solene, sagrado, intangível da sentença”.
Formará
caso julgado a sentença que não admita recurso ou cujo recurso não tenha sido
interposto no prazo estipulado.
Teremos
então uma decisão judicial que, em virtude da não impugnação judicial, transita
em julgado, tornando-se definitiva, consolidada na ordem jurídica.
A
ideia de segurança jurídica encontrou porto seguro encontrou no Direito
Constitucional, que a acolheu na figura do caso julgado relativo a normas
inconstitucionais, vertido no art.282º/3 da Constituição da República
Portuguesa (CRP), e aplicável quando a matéria subjacente seja penal,
disciplinar ou ilícito de mera contra ordenação social, desde que a manutenção
do efeito tenha conteúdo mais favorável ao arguido.
O
caso decidido, por sua vez, tem assento legislativo no art.38º/1 e no art.76º/4
do Código de Processo nos Tribunais Administrativo (CPTA).
O
art.38º/1 do CPTA, prevê os casos excepcionais em que o tribunal pode conhecer,
a título apenas incidental, da ilegalidade de um ato administrativo que já não
possa ser impugnado, que será aquele que a lei substantiva determine,
nomeadamente, o domínio da responsabilidade civil da administração.
Por
sua vez, o art.76º/4 do CPTA, anterior 76º/3, prescreve que a retroactividade
da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral não afecta os atos
administrativos inimpugnáveis, salvo quando estes respeitem a matéria
sancionatória, e cujo conteúdo dos mesmos seja menos favorável ao particular,
solução semelhante à constitucionalmente consagrada no art.282º/3 da CRP.
Importa
clarificar o conceito de ato administrativo inimpugnável, que forma caso decidido.
A
doutrina entende por ato administrativo inimpugnável aquele relativamente ao qual
se encontra transcorrido o prazo de impugnação contenciosa, consolidando-se
assim na ordem jurídica, uma vez que, nas palavras de Freitas do Amaral, não
seria compaginável com o princípio da segurança jurídica a ideia de incerteza
infinita acerca da legalidade de um ato administrativo.
Contudo,
a benevolente consagração do mesmo gera dúvidas insanáveis, que por certo não
são mais do que recalques da infância difícil do Contencioso Administrativo,
que nem o seu Crisma conseguiu expurgar.
E
a dúvida mais premente será certamente aquela que não se compadece com o
alargamento do art.282º/3 CRP ao caso decidido, quando o próprio preceito
constitucional não o prevê.
A
doutrina tem adotado algumas posições acerca da admissibilidade da
interpretação operada pelo legislador ordinário.
O
Professor Jorge Miranda admite a interpretação extensiva do art.282º/3 CRP,
numa lógica de garantia da estabilidade e segurança jurídica a que aludimos
supra, tutelando os interesses legítimos afectados pelo ato inconstitucional
pelo crivo do art.282º/4 CRP, posição acompanhada pelo Professor Vitalino Canas.
O Professor Paulo
Otero, por sua vez, entende que a declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral não afecta as situações jurídico-administrativas consolidadas
que tenham sido criadas por força de norma, à data, constitucional. O Professor
alarga a ressalva aos atos e contratos cujo decurso do prazo de revogação por invalidade
já tenha prescrito, o que nos parece excessivo, na medida em que ainda há
possibilidade de impugnação contenciosa.
Os
Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira entendem que não é possível
interpretar extensivamente o preceito de modo a conceder o efeito de caso
decidido, pois tal alargamento de meios jurídicos que cristalizam a decisão,
por via da sua excecionalidade, tem de estar expressamente prevista. Admitem,
contudo, que os atos administrativos inimpugnáveis não podem ser
retroativamente afectados por decisão do Tribunal Constitucional.
Assistimos assim a um
fenómeno de jurisdificação de atos inválidos produzidos ao abrigo de norma
inconstitucional, aparentemente válida, o que, de certa forma, justifica a
emissão dos mesmos, sanando os seus efeitos ilegais, por, a priori, terem sido de fato entendidos como legais.
A jurisprudência do
Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente no acórdão de 16/04/1981,
mostrou-se favorável à admissibilidade da ressalva dos efeitos do caso
decidido, confirmando a sua orientação no acórdão uniformizador de
jurisprudência de 12/02/1985, em que refere como corolário da segurança
jurídica a incontestabilidade do ato.
Mas não podemos ser
meros expectadores de bancada, devendo alertar o árbitro para as faltas graves
que estão a ser cometidas.
Acompanhando a
posição do Professor Vasco Pereira da Silva, que idealizou a extinção da figura
da inimpugnabilidade de atos administrativos aquando da reforma de 2004, com a
adopção, no então art.51º CPTA, da impugnabilidade dos atos administrativos em
função da sua eficácia externa e do seu carácter lesivo para os particulares.
Na sua pura
concepção, o Professor admitia que o art.38º do CPTA destinar-se-ia ao impedimento
de propositura de ação administrativa especial, configurada à época, o que desencadearia
um mero efeito processual, e não uma espécie de convalidação do ato.
Teceremos breves
argumentos que sustentam a nossa posição, e que já haviam sido enunciados pelo
Professor Blanco de Morais.
A adopção do caso
decidido é inconstitucional, na medida em que permite a subsistência de atos
lesivos de direitos e interesses legitimamente protegidos dos particulares, de
forma injustificada, na medida em que a sua legitimidade advém de atos
inválidos, possivelmente até desproporcionais ou discriminatórios.
Parece-nos que viola
o princípio da separação de poderes, na medida em que equipara o ato
administrativo a uma sentença, confundindo as esferas de manifestação do poder
judicial e do poder administrativo.
Está ainda manifestamente
desconforme com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia,
plasmada no acórdão Küne, de
13/01/2004, processo C-453/00, em que se consagrou o afastamento da ordem
jurídica de decisões administrativas ilegais, quando estas violassem o Direito
da União Europeia.
Sabemos que a
recuperação dos traumas de infância carece de uma profunda psicanálise, mas
temos como certo que o tempo e paciência investidos na mesma foram mais do que
suficientes para que sejam reclamados os seus frutos, devendo o legislador,
urgentemente, rever o conceito de inimpugnabilidade do ato administrativo que,
ainda que pudesse fazer sentido no tempo do ilustre Professor Marcello Caetano,
confere uma prerrogativa incompreensível face à intromissão nos direitos e
interesses legítimos dos particulares, completamente inaceitável num Estado de
Direito Democrático.
Sílvia Ferreira, aluna nº23421
Bibliografia:
-Esteves, Jorge de Almeida, O
caso julgado inconstitucional, Estudo em homenagem ao Professor Doutor José
Lebre de Freitas, vol.I, 1ª edição, Coimbra Editora, 2013
-Medeiros, Rui, Constituição
Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra Editora, 2007
-Silva, Vasco Pereira, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009
-Canotilho, Gomes e Moreira,
Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra
Editora, 1993
-Morais, Blanco de, Justiça
Constitucional, vol.II, 1ª edição, Coimbra Editora, 2002
-Silva, Vasco Pereira da,
Revisitando a questão do pretenso “caso decidido” no Direito Constitucional e
no Direito Administrativo Português, em Estudos em Homenagem ao Professor Jorge
Miranda, vol.III, Coimbra, 2012
-Amaral, Diogo Freitas, Direito
Administrativo, vol.IV, 1989
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