O dictatum jurisprudencial
Os poderes de pronúncia do tribunal na acção de condenação à
prática do acto devido e o relevo das questões de “discricionariedade zero”
Os ventos
de liberté, égalité e fraternité que
sopraram da Revolução Francesa de 1789 trouxeram consigo o princípio da
separação de poderes, corolário lógico dos ideais liberais, que pretendiam
afastar a promiscuidade existente até então da concentração do poder
legislativo, executivo e jurisdicional numa só entidade.
À
época, do ideal ficou apenas a benevolência de uma esperança futura, não tendo
a promiscuidade desaparecido, uma vez que os tribunais judiciais viram o seu
limite de actuação no âmbito administrativo vedado, de modo a que não
“perturbassem” a actuação administrativa, numa visão errónea de que “julgar a
administração” pudesse, no limite, consubstanciar um modo “administrar”.
Assim,
a justiça administrativa surgiu e desenvolveu-se sob a égide da própria
administração, numa concepção rígida de separação de poderes, uma “infância
difícil”, carregada de traumas, que têm vindo a marcar o desenvolvimento do
Contencioso Administrativo.
No
contexto do Estado Social, o princípio da separação de poderes passou a ser
entendido como um “princípio de equilíbrio”, com assento constitucional no
art.114º da Constituição da República Portuguesa, que disciplina a
interdependência orgânico-funcional do Estado, na medida em que cada órgão não
pode privar os demais órgãos das funções que consubstanciam o seu núcleo essencial
de competências, e sem o qual perderia a sua especialização funcional.
Tal
especialização, aplicada ao poder executivo, encontra-se vertida na reserva de
administração, o palco de actuação a solo da Administração, no qual não pode
ser hetero-determinada quer pelo poder legislativo, quer pelo poder judicial.
Contudo,
a evolução do Estado Social trouxe à colação a clivagem entre o princípio da
separação de poderes, ainda que modernamente entendido, e os princípios da
legalidade e da tutela jurisdicional efectiva.
Surgiram
então os limites funcionais da jurisdição
administrativa, a restrição da fiscalização levada a cabo pelos tribunais à
compatibilidade da actuação da Administração com as emanações do poder
legislativo, o que não coarta o palco reservado ao poder executivo,
limitando-se apenas a aferir se o mesmo segue o guião previamente elaborado
pelo poder legislativo, estando obviamente excluídas as questões de mérito, uma
vez que não pode ser o tribunal a aferir da conveniência ou oportunidade da
actuação executiva, e densificando o princípio do controlo judicial da
actividade administrativa, vertido no art.268º/4 da CRP e no art.2º do Código
de Processo nos Tribunais Administrativos.
Um
dos corolários de maior relevo do princípio do controlo judicial da actividade
administrativa será a acção de condenação à prática de acto administrativo
devido, prevista no art.66ºss do CPTA.
Na
acção em análise pretende-se obter uma sentença que condene a Administração à
prática de um omitido ou legalmente recusado, art.66º/1 CPTA.
De
acordo com a doutrina administrativista, na pessoa do Professor Vieira de
Andrade, o acto administrativo devido é “…aquele que, na perspectiva do autor,
deveria ter sido emitido e não for, quer tenha havido uma pura omissão, quer
tenha sido praticado um acto que não satisfaça a sua pretensão”[1].
Assim
sendo, numa interpretação do art.71º/1 CPTA, “…tanto nos casos em que a
Administração se tenha recusado a apreciar o pedido do particular, mediante um
acto administrativo de rejeição liminar, como naqueles em que tenha omitido a
prática do acto administrativo, o tribunal não se limita a devolver a questão
ao órgão competente, anulando ou declarando nulo ou inexiste o eventual acto de
diferimento, mas pronuncia-se sobre a pretensão material do interessado,
impondo a prática do acto devido.”[2].
Deve
então o tribunal emitir uma sentença de condenação estrita, de conteúdo
específico e densificado, nos casos em que não exista margem de livre
apreciação deixada à Administração, que deverá acatar a sentença e actuar
concreta e favoravelmente face à pretensão do interessado.
A
Administração, no palco que é seu por Direito, tem uma prerrogativa de
discricionariedade[3],
um espaço de livre criação de efeitos jurídicos confinado ao poder executivo,
em que, relativamente a determinadas matérias, lhe é possível formular juízos
de valor próprios, excluídos do âmbito do controlo jurisdicional, questão
disciplinada pelo art.71º/2 CPTA.
A
concretização do que são as “valorações próprias do exercício da função administrativa”
será levada a cabo pelo tribunal, que terá que atender “…à interpretação da
norma resultante do poder administrativo e do complexo normativo em que ela se
integra, socorrendo-se dos diversos recursos da hermenêutica (…) por forma a
avaliar a existência de uma opção legislativa que visa atribuir poder de
decisão ao nível da execução administrativa da lei.”[4].
Nestes
casos, em que a margem de discricionariedade ou a valoração dos pressupostos
permitem que mais do que uma solução seja considerada válida, não pode o
tribunal determinar o conteúdo do acto a praticar, limitando-se a emitir uma
“sentença-quadro”, na terminologia alemã, e que se explicitam as vinculações a
ter em conta pela Administração na emissão do acto devido.
Caracterizada
a acção de condenação à prática de acto devido, estamos então em condições para
nos debruçarmos sobre os casos inexistência de margem de livre decisão por
parte da Administração, situação prevista no art.71º/2 do CPTA a contrario.
Cumpre
diferenciar, desde logo, da análise supra feita do art.71º/1 do CPTA. Não
estamos ora perante um caso de ausência de margem de livre decisão, em que a
actuação é, desde o início, estritamente vinculada, mas sim de casos em que a
sacrossanta margem de livre decisão existia mas, dadas as circunstâncias do
caso concreto, passe a existir apenas e só uma decisão admissível na óptica do
Direito.
A
solução preconizada for primeiramente estudada no direito germânico, aquando
das situações de restrição da discricionariedade a apenas uma decisão válida e
de admissibilidade de apenas uma forma de subsunção no preenchimento de
conceitos indeterminados.
Como
já foi dito, a Administração possui uma margem de discricionariedade que lhe é
normativamente conferida. O legislador, na impossibilidade, ou mesmo na
ausência de intenção de definir a totalidade da previsão ou estatuição
normativa, conferindo ao poder executivo essa faculdade.
O
âmbito de aplicação da norma habilitadora, a que carece de preenchimento
valorativo ou possibilita à Administração um leque de opções a tomar, todas
elas válidas, pode ser restringido por razões intrínsecas.
O
motivo que pode levar à restrição, na lógica da metodologia jurídica de Larenz,
afigura-se desde logo na interpretação teleológica da norma ao caso concreto,
quando as circunstâncias de facto preencham de tal forma a previsão normativa
que, no caso concreto, o fim da norma postule que apenas e só num determinado
sentido possa a decisão ser tomada.
As
razões extrínsecas de redução do âmbito de aplicação da norma habilitadora da
livre apreciação administrativa prendem-se, em larga medida, com a lógica de
hierarquia normativa de Kelsen, designadamente, quando uma norma de valor
hierárquico superior derrogue a norma habilitadora da discricionariedade.
Tal
derrogação poderá operar por via direitos fundamentais.
Com
a devia abstração da questão da fixação do grau de intensidade a partir do qual
se considera violado o conteúdo de um direito fundamental, atenderemos à
concepção primária do mesmo, a de defesa dos indivíduos contra o Estado.
Assim,
quando a actuação da Administração violasse o princípio da proporcionalidade,
ou seja, quando a lesão causada ao particular fosse desproporcional face ao
interesse do Estado, a Administração não teria margem de escolha, não podendo,
de todo, actuar.
Na
vertente da proteção dos direitos fundamentais por parte do Estado, a norma
habilitadora teria de ceder quando a não actuação da Administração pusesse em
causa o cumprimento do dever de proteção jurídico-constitucional mínimo exigido,
a tangente que permite assegurar a proteção do núcleo da dignidade do direito
fundamental em causa, coartando a margem de escolha da Administração que, neste
caso, não poderia abster-se de actuar.
Importa
também analisar os casos em que a margem de livre apreciação é coartada pelas
situações de “precedente” administrativo. Colocamos aspas, porque não nos
referimos ao valor de precedente britânico, mas sim à actuação reiterada da
Administração em determinado sentido, que gera uma convicção digna de tutela de
que, em casos futuros, a decisão será no mesmo sentido. Aqui voltamos ao
direito de common law, na medida em
que, para que a questão do precedente seja levantada, a ratio decidendi terá de ser a mesma. Por outras palavras, só se
poderá invocar a auto-vinculação da Administração quando esteja em causa
violação do direito fundamental de igualdade, ou seja, quando as circunstâncias
de um caso concreto sejam de tal forma idênticas às de outros casos concretos
que não se justifique outra decisão administrativa que não a tomada previamente
no conjunto de casos já apreciados.
As
possibilidades de decisão da Administração podem ainda ceder em virtude de
colisão com princípios jurídico-constitucionais, nomeadamente, os princípios
gerais pelos quais se deve pautar a conduta administrativa, vertidos no
art.266º/2 da CRP, que não reconduzem a uma solução material positiva, pelo
contrário, delimitam negativamente as decisões que, em caso algum, podem ser
adotadas.
Como
facilmente se afigura, a delimitação negativa de decisão operada pelos
princípios só será justificada quando a sua violação for manifesta, quando for
evidente o desequilíbrio das restantes valorações
Passando
o pleonasmo, para definir as situações em que os princípios constitucionais
limitam a actuação da Administração, é necessário atender aos princípios constitucionais
da proporcionalidade, na vertente de violação manifesta e da justiça, na
qualificação das restantes alternativas como injustas ou inadequadas à
pretensão do autor.
Por
fim, na hierarquia supra legal, temos ainda o Direito da União Europeia, que
delimita o âmbito de decisão da Administração, por exemplo, através de
regulamentos interpretativos ou de diretiva cuja transposição seja de tal forma
precisa que limite a decisão administrativa no caso concreto.
Importa
ainda referir as situações de limitação da actuação administrativa de valor
hierárquico igual ou inferior à norma habilitante da margem de decisão
administrativa.
Reportamo-nos
sumariamente ao contratos administrativos e aos actos administrativos, em que a
Administração se encontra obrigada a respeitar os efeitos jurídicos que estes,
enquanto válidos e eficazes, produzem face aos particulares. Tal derrogação
ancora-se no princípio da legalidade, o que lhe confere uma legitimidade
reforçada de derrogação, ainda que o nível hierárquico da vinculação seja
inferior.
Verificamos
assim que um dos traumas do contencioso administrativo se encontra
ultrapassado, na medida em que o tribunal pode proferir sentenças de condenação
estrita perante actos devidos pela Administração.
E a consequência da psicanálise não
podia ser mais feliz do que a possibilidade do particular exigir à
Administração que, na sua margem de decisão, opte pela escolha juridicamente
mais correta, ou, quando tal margem decisória seja reduzida a zero, a sua
pretensão, quase prece, por uma escolha legal que atenda às suas necessidades,
por mágica metamorfose, se torne num direito de exigir um determinado acto
administrativo.
Bibliografia:
-Almeida,
Mário Aroso de, Manual de Processo
Administrativo, 2013, Reimpressão.
-Andrade, José Vieira de, Justiça Administrativa, Lições
Policopiadas, Coimbra, 9ª edição, 2007, p.224.
-Cadilha, António Cadilha, Os poderes de pronúncia jurisdicionais na
acção de condenação à prática de acto devido e os limites funcionais da justiça
administrativa, Estudos em Homenagem ao Professor Sérvulo Correia, vol.II,
p.189.
-Silva, Vasco
Pereira da, O Contencioso Administrativo
no Divã da Psicanálise, Almedina, 2ª edição, 2009, p.386.
Sílvia Ferreira
Aluna nº23421
Subturma 1
[1] Andrade, José Vieira de, Justiça Administrativa, Lições
Policopiadas, Coimbra, 9ª edição, 2007, p.224.
[2] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise, Almedina, 2ª edição, 2009, p.386.
[3]
Entendida no presente texto de acordo com a teoria unitária da
discricionariedade, abarcando no conceito de discricionariedade quer a
indeterminação de consequências jurídicas, quer a utilização de conceitos
jurídicos indeterminados.
[4] Cadilha, António Cadilha, Os poderes de pronúncia jurisdicionais na
acção de condenação à prática de acto devido e os limites funcionais da justiça
administrativa, Estudos em Homenagem ao Professor Sérvulo Correia, vol.II,
p.189.
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