sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

O dictatum jurisprudencial

Os poderes de pronúncia do tribunal na acção de condenação à prática do acto devido e o relevo das questões de “discricionariedade zero”
            Os ventos de liberté, égalité e fraternité que sopraram da Revolução Francesa de 1789 trouxeram consigo o princípio da separação de poderes, corolário lógico dos ideais liberais, que pretendiam afastar a promiscuidade existente até então da concentração do poder legislativo, executivo e jurisdicional numa só entidade.
            À época, do ideal ficou apenas a benevolência de uma esperança futura, não tendo a promiscuidade desaparecido, uma vez que os tribunais judiciais viram o seu limite de actuação no âmbito administrativo vedado, de modo a que não “perturbassem” a actuação administrativa, numa visão errónea de que “julgar a administração” pudesse, no limite, consubstanciar um modo “administrar”.
            Assim, a justiça administrativa surgiu e desenvolveu-se sob a égide da própria administração, numa concepção rígida de separação de poderes, uma “infância difícil”, carregada de traumas, que têm vindo a marcar o desenvolvimento do Contencioso Administrativo.
            No contexto do Estado Social, o princípio da separação de poderes passou a ser entendido como um “princípio de equilíbrio”, com assento constitucional no art.114º da Constituição da República Portuguesa, que disciplina a interdependência orgânico-funcional do Estado, na medida em que cada órgão não pode privar os demais órgãos das funções que consubstanciam o seu núcleo essencial de competências, e sem o qual perderia a sua especialização funcional.
            Tal especialização, aplicada ao poder executivo, encontra-se vertida na reserva de administração, o palco de actuação a solo da Administração, no qual não pode ser hetero-determinada quer pelo poder legislativo, quer pelo poder judicial.
            Contudo, a evolução do Estado Social trouxe à colação a clivagem entre o princípio da separação de poderes, ainda que modernamente entendido, e os princípios da legalidade e da tutela jurisdicional efectiva.
            Surgiram então os limites funcionais da jurisdição administrativa, a restrição da fiscalização levada a cabo pelos tribunais à compatibilidade da actuação da Administração com as emanações do poder legislativo, o que não coarta o palco reservado ao poder executivo, limitando-se apenas a aferir se o mesmo segue o guião previamente elaborado pelo poder legislativo, estando obviamente excluídas as questões de mérito, uma vez que não pode ser o tribunal a aferir da conveniência ou oportunidade da actuação executiva, e densificando o princípio do controlo judicial da actividade administrativa, vertido no art.268º/4 da CRP e no art.2º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
            Um dos corolários de maior relevo do princípio do controlo judicial da actividade administrativa será a acção de condenação à prática de acto administrativo devido, prevista no art.66ºss do CPTA.
            Na acção em análise pretende-se obter uma sentença que condene a Administração à prática de um omitido ou legalmente recusado, art.66º/1 CPTA.
            De acordo com a doutrina administrativista, na pessoa do Professor Vieira de Andrade, o acto administrativo devido é “…aquele que, na perspectiva do autor, deveria ter sido emitido e não for, quer tenha havido uma pura omissão, quer tenha sido praticado um acto que não satisfaça a sua pretensão”[1].
            Assim sendo, numa interpretação do art.71º/1 CPTA, “…tanto nos casos em que a Administração se tenha recusado a apreciar o pedido do particular, mediante um acto administrativo de rejeição liminar, como naqueles em que tenha omitido a prática do acto administrativo, o tribunal não se limita a devolver a questão ao órgão competente, anulando ou declarando nulo ou inexiste o eventual acto de diferimento, mas pronuncia-se sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do acto devido.”[2].
            Deve então o tribunal emitir uma sentença de condenação estrita, de conteúdo específico e densificado, nos casos em que não exista margem de livre apreciação deixada à Administração, que deverá acatar a sentença e actuar concreta e favoravelmente face à pretensão do interessado.
            A Administração, no palco que é seu por Direito, tem uma prerrogativa de discricionariedade[3], um espaço de livre criação de efeitos jurídicos confinado ao poder executivo, em que, relativamente a determinadas matérias, lhe é possível formular juízos de valor próprios, excluídos do âmbito do controlo jurisdicional, questão disciplinada pelo art.71º/2 CPTA.
            A concretização do que são as “valorações próprias do exercício da função administrativa” será levada a cabo pelo tribunal, que terá que atender “…à interpretação da norma resultante do poder administrativo e do complexo normativo em que ela se integra, socorrendo-se dos diversos recursos da hermenêutica (…) por forma a avaliar a existência de uma opção legislativa que visa atribuir poder de decisão ao nível da execução administrativa da lei.”[4].
            Nestes casos, em que a margem de discricionariedade ou a valoração dos pressupostos permitem que mais do que uma solução seja considerada válida, não pode o tribunal determinar o conteúdo do acto a praticar, limitando-se a emitir uma “sentença-quadro”, na terminologia alemã, e que se explicitam as vinculações a ter em conta pela Administração na emissão do acto devido.
            Caracterizada a acção de condenação à prática de acto devido, estamos então em condições para nos debruçarmos sobre os casos inexistência de margem de livre decisão por parte da Administração, situação prevista no art.71º/2 do CPTA a contrario.
            Cumpre diferenciar, desde logo, da análise supra feita do art.71º/1 do CPTA. Não estamos ora perante um caso de ausência de margem de livre decisão, em que a actuação é, desde o início, estritamente vinculada, mas sim de casos em que a sacrossanta margem de livre decisão existia mas, dadas as circunstâncias do caso concreto, passe a existir apenas e só uma decisão admissível na óptica do Direito.
            A solução preconizada for primeiramente estudada no direito germânico, aquando das situações de restrição da discricionariedade a apenas uma decisão válida e de admissibilidade de apenas uma forma de subsunção no preenchimento de conceitos indeterminados.
            Como já foi dito, a Administração possui uma margem de discricionariedade que lhe é normativamente conferida. O legislador, na impossibilidade, ou mesmo na ausência de intenção de definir a totalidade da previsão ou estatuição normativa, conferindo ao poder executivo essa faculdade.
            O âmbito de aplicação da norma habilitadora, a que carece de preenchimento valorativo ou possibilita à Administração um leque de opções a tomar, todas elas válidas, pode ser restringido por razões intrínsecas.
            O motivo que pode levar à restrição, na lógica da metodologia jurídica de Larenz, afigura-se desde logo na interpretação teleológica da norma ao caso concreto, quando as circunstâncias de facto preencham de tal forma a previsão normativa que, no caso concreto, o fim da norma postule que apenas e só num determinado sentido possa a decisão ser tomada.
            As razões extrínsecas de redução do âmbito de aplicação da norma habilitadora da livre apreciação administrativa prendem-se, em larga medida, com a lógica de hierarquia normativa de Kelsen, designadamente, quando uma norma de valor hierárquico superior derrogue a norma habilitadora da discricionariedade.
            Tal derrogação poderá operar por via direitos fundamentais.
            Com a devia abstração da questão da fixação do grau de intensidade a partir do qual se considera violado o conteúdo de um direito fundamental, atenderemos à concepção primária do mesmo, a de defesa dos indivíduos contra o Estado.
            Assim, quando a actuação da Administração violasse o princípio da proporcionalidade, ou seja, quando a lesão causada ao particular fosse desproporcional face ao interesse do Estado, a Administração não teria margem de escolha, não podendo, de todo, actuar.
            Na vertente da proteção dos direitos fundamentais por parte do Estado, a norma habilitadora teria de ceder quando a não actuação da Administração pusesse em causa o cumprimento do dever de proteção jurídico-constitucional mínimo exigido, a tangente que permite assegurar a proteção do núcleo da dignidade do direito fundamental em causa, coartando a margem de escolha da Administração que, neste caso, não poderia abster-se de actuar.
            Importa também analisar os casos em que a margem de livre apreciação é coartada pelas situações de “precedente” administrativo. Colocamos aspas, porque não nos referimos ao valor de precedente britânico, mas sim à actuação reiterada da Administração em determinado sentido, que gera uma convicção digna de tutela de que, em casos futuros, a decisão será no mesmo sentido. Aqui voltamos ao direito de common law, na medida em que, para que a questão do precedente seja levantada, a ratio decidendi terá de ser a mesma. Por outras palavras, só se poderá invocar a auto-vinculação da Administração quando esteja em causa violação do direito fundamental de igualdade, ou seja, quando as circunstâncias de um caso concreto sejam de tal forma idênticas às de outros casos concretos que não se justifique outra decisão administrativa que não a tomada previamente no conjunto de casos já apreciados.
            As possibilidades de decisão da Administração podem ainda ceder em virtude de colisão com princípios jurídico-constitucionais, nomeadamente, os princípios gerais pelos quais se deve pautar a conduta administrativa, vertidos no art.266º/2 da CRP, que não reconduzem a uma solução material positiva, pelo contrário, delimitam negativamente as decisões que, em caso algum, podem ser adotadas.
            Como facilmente se afigura, a delimitação negativa de decisão operada pelos princípios só será justificada quando a sua violação for manifesta, quando for evidente o desequilíbrio das restantes valorações
            Passando o pleonasmo, para definir as situações em que os princípios constitucionais limitam a actuação da Administração, é necessário atender aos princípios constitucionais da proporcionalidade, na vertente de violação manifesta e da justiça, na qualificação das restantes alternativas como injustas ou inadequadas à pretensão do autor.
            Por fim, na hierarquia supra legal, temos ainda o Direito da União Europeia, que delimita o âmbito de decisão da Administração, por exemplo, através de regulamentos interpretativos ou de diretiva cuja transposição seja de tal forma precisa que limite a decisão administrativa no caso concreto.
            Importa ainda referir as situações de limitação da actuação administrativa de valor hierárquico igual ou inferior à norma habilitante da margem de decisão administrativa.
            Reportamo-nos sumariamente ao contratos administrativos e aos actos administrativos, em que a Administração se encontra obrigada a respeitar os efeitos jurídicos que estes, enquanto válidos e eficazes, produzem face aos particulares. Tal derrogação ancora-se no princípio da legalidade, o que lhe confere uma legitimidade reforçada de derrogação, ainda que o nível hierárquico da vinculação seja inferior.
            Verificamos assim que um dos traumas do contencioso administrativo se encontra ultrapassado, na medida em que o tribunal pode proferir sentenças de condenação estrita perante actos devidos pela Administração.
            E a consequência da psicanálise não podia ser mais feliz do que a possibilidade do particular exigir à Administração que, na sua margem de decisão, opte pela escolha juridicamente mais correta, ou, quando tal margem decisória seja reduzida a zero, a sua pretensão, quase prece, por uma escolha legal que atenda às suas necessidades, por mágica metamorfose, se torne num direito de exigir um determinado acto administrativo.
Bibliografia:
-Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2013, Reimpressão.
-Andrade, José Vieira de, Justiça Administrativa, Lições Policopiadas, Coimbra, 9ª edição, 2007, p.224.
-Cadilha, António Cadilha, Os poderes de pronúncia jurisdicionais na acção de condenação à prática de acto devido e os limites funcionais da justiça administrativa, Estudos em Homenagem ao Professor Sérvulo Correia, vol.II, p.189.
-Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2ª edição, 2009, p.386.


Sílvia Ferreira
Aluna nº23421
Subturma 1


[1] Andrade, José Vieira de, Justiça Administrativa, Lições Policopiadas, Coimbra, 9ª edição, 2007, p.224.
[2] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2ª edição, 2009, p.386.
[3] Entendida no presente texto de acordo com a teoria unitária da discricionariedade, abarcando no conceito de discricionariedade quer a indeterminação de consequências jurídicas, quer a utilização de conceitos jurídicos indeterminados.
[4] Cadilha, António Cadilha, Os poderes de pronúncia jurisdicionais na acção de condenação à prática de acto devido e os limites funcionais da justiça administrativa, Estudos em Homenagem ao Professor Sérvulo Correia, vol.II, p.189.

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