segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Dependência constitucional do direito administrativo e dependência administrativa do direito constitucional, no âmbito das reformas constitucionais

Desde de sempre que a doutrina administrativa faz referências à constituição, e na jurisprudência se dá relevo à supremacia das normas constitucionais. Até 1958, o único juiz que decidia nos domínios regidos pela constituição era o juiz administrativo. Os materiais de base do nosso direito público eram o regime do poder politico, o serviço publico, a hierarquia das normas, a responsabilidade pública, os princípios gerais do direito, uma vez que pré-existiam não apenas à sua constitucionalização, mas também aos próprios textos constitucionais, aos quais eles forneceram grande parte do respectivo conteúdo.
As questões que se colocam neste sentido são a possibilidade da administração actuar tendo por fundamento a realização da constituição; a lei fundamental servir de padrão para a aferição da validade e para o controlo da actuação administrativa; do que se trata, não é mais, portanto, de uma mera questão formal de subordinação da administração à constituição, mas sim do problema material de realização continuada e permanente das normas fundamentais através do direito administrativo.
No domínio processual, existe uma relação de dependência constitucional do contencioso administrativo, que faz dele direito constitucional concretizado. As modernas constituições de estado de direito não estabelecem apenas as opções fundamentais em matéria de organização, funcionamento, procedimento, ou actuação da administração pública, mas passaram a incluir também regras quanto à natureza e à organização dos tribunais competentes para o julgamento dos litígios administrativos, quanto aos direitos dos cidadãos em matéria de processo, quanto à função e estrutura dos processos, quanto aos poderes do juiz. Todas estas questões do processo administrativo foram promovidas à categoria de princípios e regras fundamentais.
A dependência do processo administrativo relativamente à constituição é de tal modo vincada que a mudança de paradigma com a passagem de um modelo em que o tribunal dependia da administração e o contencioso era objectivo e limitado, para outro modelo em que o tribunal é independente e o contencioso é subjectivo e de plena jurisdição, só se pôde realizar com apoio do direito constitucional, fenómeno que ocorreu com a implantação do estado pós-social.
Os princípios do estado de direito (proporcionalidade, não retroactividade, confiança e segurança) paralelamente aos princípios constitucionais (legalidade, imparcialidade, justiça) forçam a reconstrução do direito administrativo à luz do direito constitucional a partir da constitucionalização do direito administrativo.
Mas, se há uma dependência constitucional do direito administrativo, a afirmação inversa também é verdade. Isto é evidente no contencioso administrativo, enquanto domínio privilegiado de realização dos direitos fundamentais. Estes direitos fundamentais consubstanciam-se em regras substantivas, procedimentais e processuais, sendo que a sua concretização não é possível sem que existam meios contenciosos adequados, de forma a assegurar a sua tutela plena e efectiva.
A garantia de um processo por um tribunal independente e imparcial, destinado a proteger as posições jurídicas subjectivas dos particulares, e nomeadamente as que estão consagradas na lei fundamental, constitui assim, simultaneamente, uma condição de realização e uma dimensão essencial dos direitos fundamentais. De todo o modo, Constituição depende do processo administrativo porque os direitos fundamentais do domínio processual, para além da sua relevância própria, enquanto autónomos, e da sua importância instrumental, enquanto garantes da protecção judicial de todos os direitos das relações jurídicas administrativas (independentemente de terem ou não assento constitucional) são também uma condição essencial da realização de todos os demais direitos, pois esta dimensão processual integra o respectivo conteúdo jurídico-material). A efectividade da Constituição depende da existência e do adequado funcionamento dos tribunais encarregados de fiscalizar a administração. A efectividade da constituição depende ainda do contencioso administrativo, na medida em que as regras e os princípios fundamentais relativos à administração pública (organização, funcionamento, procedimento e actuação) constituem parte integrante da constituição material, cabendo aos tribunais garantir a sua aplicação.

A constituição portuguesa estabelece um contencioso administrativo integralmente jurisdicionalizado e destinado à tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares nas relações jurídicas administrativas (202º ss + 268nº4e5 CRP). A CRP de 1976, assim como as posteriores revisões constitucionais, inserem-se, assim, no movimento de constitucionalização do contencioso administrativo que, a partir dos anos 70 do século XX se caracteriza pela elevação ao nível constitucional da garantia de controlo jurisdicional da administração, assim como pela consagração de direitos fundamentais em matéria de processo administrativo.
O texto originário da Constituição de 1976 apresentava um compromisso entre duas visões opostas de contencioso administrativo e de acto administrativo. A uniformização jurídica de tais princípios em “estado de tensão” implicava a abertura do texto constitucional, que remetia parte da sua concretização para o domínio da Constituição material. Na sequência da constituição, surge um diploma importante, o DL 256-A/77 de 17 de Junho, que vai balizar uma adequação da realidade legislativa à nova ordem constitucional, adoptando uma perspectiva minimalista, regulando apenas alguns aspectos da actuação e controlo da administração. A fundamentação dos actos administrativos corresponde a uma exigência de transparência típica de uma administração de um estado de direito democrático que se traduz em actuar bem e no dever de fundamentação. Este dever de fundamentar é também “direito constitucional concretizado” na medida em que constitui garantia dos particulares e facilita protecção jurídica subjectiva. Por tudo isto, se pode considerar que o modelo do contencioso administrativo, constante do texto originário da CRP de 1976, encontrou uma realização minimalista através do Decreto-Lei, que, em face da nova ordem constitucional não foi suficiente para dar cumprimento às exigências da lei fundamental.

Por sua vez, a revisão constitucional de 1982 veio alterar o compromisso originário do contencioso administrativo, acentuando a sua vertente de protecção jurídica. A CRP (268ºnº3) continua a consagrar uma garantia de recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos definitivos e executórios, mas acrescenta dois outros elementos que são o respeitante a quaisquer actos, independentemente da sua forma e a obtenção do reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido sendo que esta referência tem subjacente uma dimensão subjectiva do contencioso, fazendo pender para o lado da protecção dos direitos individuais o compromisso originário em que assentava a justiça administrativa.  
Ao nível da noção de acto administrativo, o compromisso constitucional também se modificou, pois se por um lado, ainda se mantém a noção de acto definitivo e executório, por outro lado, adopta-se uma concepção material de acto administrativo, ao permitir a impugnação de decisões individuais e concretas. Faz-se uma concepção democratizada de acto administrativo que se manifesta também no alargamento dos direitos fundamentais dos indivíduos perante a administração, que a revisão constitucional de 1982 vai consagrar (como é o caso do direito à notificação e à fundamentação das decisões administrativas - 268ºnº2).O dever de fundamentação traduz então a relação de interdependência recíproca entre direito constitucional e direito administrativo, pois este dever legal foi estabelecido pelo legislador ordinário como forma de realização das garantias constitucionais perante a administração. Contudo, posteriormente, ele vai transitar para o texto constitucional, em resultado desse tratamento legislativo, como um direito autónomo.

Na revisão de 1985/1986 ocorreu uma reforma deveras importante através de dois diplomas que são o Estatuto dos tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) DL 129/84 de 27 Abril e a Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (LEPTA) DL 267/85 de 16 Julho. Tratou-se de uma reforma de fundo, que balizou adequar a regulação da justiça administrativa às opções constitucionais de plena jurisdicionalização e de protecção jurídica subjectiva. Deste modo, estabeleceu-se a possibilidade de recurso contencioso contra actos administrativos independentemente da forma (art.25ºnº2 LEPTA). A organização do recurso de anulação surgiu como um verdadeiro processo de partes, em que o particular e administração possuem igual possibilidade de intervir no processo (princípio do contraditório). Criou-se a possibilidade de impugnação contenciosa dos regulamentos administrativos (63º e ss LEPTA) e um novo meio principal, a acção para o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos (69º e ss LEPTA). Criou-se também a intimação para consulta de documentos ou passagem de certidões (82º e ss LEPTA) e a intimação para um comportamento (86º e ss LEPTA). Considera-se porém que a reforma de 1984/1985 foi insuficiente, já que, em resultado da deficiência técnica legislativa adoptada, não procedeu à revogação global da legislação reguladora do contencioso administrativo, mantendo em vigor numerosas disposições contidas em diplomas elaborados no quadro da anterior ordem constitucional. Esta situação era geradora de dúvidas pois não permitia saber exactamente quais as normas dos diplomas anteriores que tinham sofrido revogação ou que se encontravam em vigor; impunha dificuldades obrigando o interprete e o aplicador do direito a analisar e aplicar diversos diplomas para encontrar a regra processual aplicável e transparecia incongruências, pois nem sempre era possível a compatibilização de diplomas elaborados no âmbito de ordens constitucionais diferentes .

A revisão de 1989 implicou uma radical transformação do compromisso constitucional acerca do modelo de contencioso administrativo em prol da acentuação da respectiva jurisdicionalização e subjectivação. Estabeleceu-se que os tribunais administrativos e fiscais constituiam jurisdição própria, ou seja, houve uma consumação da institucionalização plena da justiça administrativa. Esta institucionalização vem associada ao reconhecimento de que ela tem por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, que é decisivo do ponto de vista substantivo, pois o particular deixou de ser entendido como um administrado (mero objecto do poder), para passar a ser um sujeito do direito que estabelece relações com a administração e, do ponto de vista processual, pois a doutrina clássica via o contencioso como uma realidade objectiva e limitada à verificação da legalidade, enquanto que agora o particular e a administração passam a ser considerados como sujeitos processuais, num processo de partes, que tem como principal objectivo a protecção dos direitos individuais. Outra questão decisiva é o desdobramento da garantia constitucional de acesso à justiça administrativa em dois direitos fundamentais, o recurso de anulação (268ºnº4 CRP) e outros meios processuais (268ºnº5 CRP), resultando deles o princípio constitucional de protecção jurisdicional plena e efectiva dos particulares. As consequências que daqui advieram foram o alargamento do universo dos actos administrativos susceptíveis de impugnação contenciosa, a alteração do compromisso constitucional originário da constituição conduzindo, em simultâneo, tanto à subjectivação do recurso contencioso como á transformação do acto administrativo. Agora os actos a tutelar neste sentido são actos praticados no termo de um procedimento conjuntamente com actos preliminares ou intermédios, actos praticados por superior hierárquico e/ou subalternos e, actos de conteúdo regulador de uma situação jurídica e actos de natureza prestadora ou conformadora. Não obstante, a garantia de recurso contencioso era ainda completada com um direito fundamental de acesso à justiça administrativa, independentemente do meio processual (principal, acessório ou complementar) que estivesse em causa. O contencioso não se esgotava no recurso de anulação. Qualquer direito particular necessitado de tutela, no âmbito de uma relação jurídica administrativa, deveria encontrar um meio processual adequado para o fazer valer.
Assim sendo, a ligação dos dois direitos fundamentais tornava inequívoca a consagração do princípio da tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares, que é a matriz do modelo constitucional de contencioso administrativo, de natureza subjectiva, destinado a garantir o primado dos direitos dos particulares nas relações jurídicas administrativas. Tais transformações do compromisso constitucional relativo ao contencioso não logravam encontrar a necessária realização na prática constitucional. Uma tal ausência de concretização das opções constitucionais, designadamente, que permitisse alterar o regime jurídico dos diferentes meios processuais e/ou criar novos meios destinados a assegurar a plena e efectiva tutela dos direitos dos particulares, assim como possibilitar o alargamento do universo dos actos impugnáveis a fim de os compatibilizar com a noção de acto lesivo, constituía uma grave omissão do legislador, numa matéria fundamental para a realização do estado de direito.
A Lei 83/95 de 31 de Agosto veio regular o direito fundamental de acção popular, dando alguma concretização constitucional, desenvolvendo uma vertente objectiva do acesso à justiça, particularmente relevante no domínio do contencioso administrativo. Contudo parece existir alguma confusão entre acção popular, acção colectiva e acção para defesa dos interesses individuais. Na opinião do Prof. Vasco Pereira da Silva, distingue-se a acção para defesa dos interesses próprios, de indivíduos ou de associações, da acção popular, destinada em primeira linha à defesa da legalidade e do interesse público, mas que pode ainda ser igualmente utilizada para defesa de interesses homogéneos de pessoas ou grupos de pessoas, quando se esteja perante interesses privados indissociáveis, cuja individualização seja (teórica ou praticamente) impossível. Entendida neste sentido, que a acção popular representava uma forma de alargamento da legitimidade, que acresce á protecção jurídica subjectiva, desenvolvendo a vertente objectiva do contencioso administrativo. Esta lei da acção popular veio então regular um aspecto importante da vertente objectiva do contencioso administrativo, concretizando a lei fundamental (CRP), contudo, não combateu eficazmente os défices de realização da constituição através da lei, pois permanecia a necessidade de dar cumprimento às disposições constitucionais que estabeleciam um sistema de justiça administrativa, que tem como prioridade a realização plena e efectiva dos direitos dos particulares nas relações administrativas.
       Seguidamente, entende-se que as principais disfunções na organização da justiça administrativa seriam a confusão da competência para decidir litígios administrativos em 1ª e 2ª instância, no mesmo órgão jurisdicional, em vez de ser exclusivamente o tribunal de recurso, o que gerava acumulação excessiva de processos no STJ e a ausência de tribunais especializados em função da matéria. Conclui-se que nem a lei da acção popular, nem as alterações ao ETAF foram capazes de diminuir a separação existente entre o modelo constitucional do contencioso administrativo e a sua realização legislativa. A tarefa de realização da constituição dirigia-se em primeiro lugar, ao próprio legislador, o qual, ao não concretizar as disposições constitucionais relativas ao contencioso, incorre em inconstitucionalidade por omissão, mas também cabe aos tribunais e demais aplicadores, sobretudo quando existe um sistema de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das leis.

Já a revisão de 1997 veio implementar outra alteração ao compromisso constitucional em matéria de contencioso administrativo no sentido da sua integral jurisdicionalização e subjectivização. O legislador constituinte vem reafirmar as grandes opções de 1989 que foram a jurisdição administrativa especial no âmbito do poder judicial (209º CRP), as relações jurídicas administrativas como objecto do contencioso (211ºnº3) e a impugnabilidade do acto lesivo (268ºnº4). Porém, o legislador constituinte vem também regular de um modo novo a garantia constitucional de acesso à justiça administrativa. Esta reformulação passa essencialmente pela colocação no centro do processo administrativo do princípio da protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares; pela consagração de um sistema de plena jurisdição, em que o juiz goza de todos os poderes necessários e adequados à protecção dos direitos dos particulares, independentemente dos meios processuais que estiverem em causa, ou de se tratar de tutela principal, cautelar ou executiva; e pela inclusão expressa do direito fundamental de impugnação de normas no conteúdo da garantia constitucional. Trata-se aqui de uma alteração material do entendimento de direitos fundamentais de acesso à justiça administrativa. Para o legislador constituinte a protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares é garantida através de sentenças cujos efeitos vão da simples apreciação e reconhecimento de direitos, à condenação da administração, passando pela impugnação dos actos administrativos, assim como das adequadas medidas cautelares. O que aqui se baliza não são os meios processuais, mas os efeitos das sentenças (impugnação, reconhecimento de direitos, determinação pratica de actos administrativos legalmente devidos). Isto significava a superação de todos os “complexos de infância difícil” do contencioso administrativo, que se tinha agora transformado num contencioso pleno e subjectivo, em que os efeitos das sentenças dos tribunais administrativos não se defrontam com qualquer limitação “natural” ou “congénita”, antes devem ter por critério e medida a plenitude e efectividade dos direitos dos particulares necessitados de tutela.
Tais opções do legislador constituinte, constantes de um direito de acesso à justiça administrativa, de natureza. Análoga aos direitos, liberdades e garantias, gozavam desde logo de aplicabilidade imediata (art.º 18ºCRP). Mas, a aplicabilidade directa das normas constitucionais em matéria de acesso à justiça não dispensava a necessária intervenção do legislador, de modo a concretizar o modelo de contencioso administrativo da lei fundamental. Pois, se em face do texto da revisão constitucional de 1989 se deveria considerar uma inconstitucionalidade por omissão de realização das normas fundamentais em matéria de justiça administrativa, então agora o desfasamento do legislador ordinário em relação à lei fundamental já levava um atraso de duas revisões constitucionais, pelo que era preciso uma reforma urgente.



Marta D'Assa-Castel Branco, nº 22182
Subturma 1


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