Desde de sempre que a doutrina administrativa faz
referências à constituição, e na jurisprudência se dá relevo à supremacia das
normas constitucionais. Até 1958, o único juiz que decidia nos domínios regidos
pela constituição era o juiz administrativo. Os materiais de base do nosso
direito público eram o regime do poder politico, o serviço publico, a
hierarquia das normas, a responsabilidade pública, os princípios gerais do
direito, uma vez que pré-existiam não apenas à sua constitucionalização, mas
também aos próprios textos constitucionais, aos quais eles forneceram grande
parte do respectivo conteúdo.
As questões que se colocam neste sentido são a
possibilidade da administração actuar tendo por fundamento a realização da
constituição; a lei fundamental servir de padrão para a aferição da validade e
para o controlo da actuação administrativa; do que se trata, não é mais,
portanto, de uma mera questão formal de subordinação da administração à
constituição, mas sim do problema material de realização continuada e
permanente das normas fundamentais através do direito administrativo.
No domínio processual, existe uma relação de
dependência constitucional do contencioso administrativo, que faz dele direito
constitucional concretizado. As modernas constituições de estado de direito não
estabelecem apenas as opções fundamentais em matéria de organização,
funcionamento, procedimento, ou actuação da administração pública, mas passaram
a incluir também regras quanto à natureza e à organização dos tribunais
competentes para o julgamento dos litígios administrativos, quanto aos direitos
dos cidadãos em matéria de processo, quanto à função e estrutura dos processos,
quanto aos poderes do juiz. Todas estas questões do processo administrativo
foram promovidas à categoria de princípios e regras fundamentais.
A dependência do processo administrativo relativamente
à constituição é de tal modo vincada que a mudança de paradigma com a passagem
de um modelo em que o tribunal dependia da administração e o contencioso era
objectivo e limitado, para outro modelo em que o tribunal é independente e o
contencioso é subjectivo e de plena jurisdição, só se pôde realizar com apoio
do direito constitucional, fenómeno que ocorreu com a implantação do estado
pós-social.
Os princípios do estado de direito (proporcionalidade,
não retroactividade, confiança e segurança) paralelamente aos princípios
constitucionais (legalidade, imparcialidade, justiça) forçam a reconstrução do
direito administrativo à luz do direito constitucional a partir da
constitucionalização do direito administrativo.
Mas, se há uma dependência constitucional do direito
administrativo, a afirmação inversa também é verdade. Isto é evidente no
contencioso administrativo, enquanto domínio privilegiado de realização dos
direitos fundamentais. Estes direitos fundamentais consubstanciam-se em regras
substantivas, procedimentais e processuais, sendo que a sua concretização não é
possível sem que existam meios contenciosos adequados, de forma a assegurar a
sua tutela plena e efectiva.
A garantia de um processo por um tribunal independente
e imparcial, destinado a proteger as posições jurídicas subjectivas dos particulares,
e nomeadamente as que estão consagradas na lei fundamental, constitui assim,
simultaneamente, uma condição de realização e uma dimensão essencial dos
direitos fundamentais. De todo o modo, Constituição depende do processo
administrativo porque os direitos fundamentais do domínio processual, para além
da sua relevância própria, enquanto autónomos, e da sua importância
instrumental, enquanto garantes da protecção judicial de todos os direitos das
relações jurídicas administrativas (independentemente de terem ou não assento
constitucional) são também uma condição essencial da realização de todos os
demais direitos, pois esta dimensão processual integra o respectivo conteúdo
jurídico-material). A efectividade da Constituição depende da existência e do
adequado funcionamento dos tribunais encarregados de fiscalizar a
administração. A efectividade da constituição depende ainda do contencioso
administrativo, na medida em que as regras e os princípios fundamentais
relativos à administração pública (organização, funcionamento, procedimento e actuação)
constituem parte integrante da constituição material, cabendo aos tribunais
garantir a sua aplicação.
A constituição portuguesa estabelece um contencioso
administrativo integralmente jurisdicionalizado e destinado à tutela plena e
efectiva dos direitos dos particulares nas relações jurídicas administrativas
(202º ss + 268nº4e5 CRP). A CRP de 1976, assim como as posteriores revisões
constitucionais, inserem-se, assim, no movimento de constitucionalização do
contencioso administrativo que, a partir dos anos 70 do século XX se
caracteriza pela elevação ao nível constitucional da garantia de controlo
jurisdicional da administração, assim como pela consagração de direitos
fundamentais em matéria de processo administrativo.
O texto originário da Constituição de 1976 apresentava
um compromisso entre duas visões opostas de contencioso administrativo e de
acto administrativo. A uniformização jurídica de tais princípios em “estado de
tensão” implicava a abertura do texto constitucional, que remetia parte da sua
concretização para o domínio da Constituição material. Na sequência da
constituição, surge um diploma importante, o DL 256-A/77 de 17 de Junho, que
vai balizar uma adequação da realidade legislativa à nova ordem constitucional,
adoptando uma perspectiva minimalista, regulando apenas alguns aspectos da
actuação e controlo da administração. A fundamentação dos actos administrativos
corresponde a uma exigência de transparência típica de uma administração de um
estado de direito democrático que se traduz em actuar bem e no dever de
fundamentação. Este dever de fundamentar é também “direito constitucional concretizado”
na medida em que constitui garantia dos particulares e facilita protecção
jurídica subjectiva. Por tudo isto, se pode considerar que o modelo do
contencioso administrativo, constante do texto originário da CRP de 1976,
encontrou uma realização minimalista através do Decreto-Lei, que, em face da
nova ordem constitucional não foi suficiente para dar cumprimento às exigências
da lei fundamental.
Por sua vez, a revisão constitucional de 1982 veio
alterar o compromisso originário do contencioso administrativo, acentuando a
sua vertente de protecção jurídica. A CRP (268ºnº3) continua a consagrar uma
garantia de recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra
quaisquer actos definitivos e executórios, mas acrescenta dois outros elementos
que são o respeitante a quaisquer actos, independentemente da sua forma e a
obtenção do reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido
sendo que esta referência tem subjacente uma dimensão subjectiva do
contencioso, fazendo pender para o lado da protecção dos direitos individuais o
compromisso originário em que assentava a justiça administrativa.
Ao nível da noção de acto administrativo, o
compromisso constitucional também se modificou, pois se por um lado, ainda se
mantém a noção de acto definitivo e executório, por outro lado, adopta-se uma
concepção material de acto administrativo, ao permitir a impugnação de decisões
individuais e concretas. Faz-se uma concepção democratizada de acto
administrativo que se manifesta também no alargamento dos direitos fundamentais
dos indivíduos perante a administração, que a revisão constitucional de 1982
vai consagrar (como é o caso do direito à notificação e à fundamentação das
decisões administrativas - 268ºnº2).O dever de fundamentação traduz então a
relação de interdependência recíproca entre direito constitucional e direito
administrativo, pois este dever legal foi estabelecido pelo legislador
ordinário como forma de realização das garantias constitucionais perante a
administração. Contudo, posteriormente, ele vai transitar para o texto
constitucional, em resultado desse tratamento legislativo, como um direito
autónomo.
Na revisão de 1985/1986 ocorreu uma reforma deveras importante
através de dois diplomas que são o Estatuto dos tribunais Administrativos e Fiscais
(ETAF) DL 129/84 de 27 Abril e a Lei de Processo dos Tribunais Administrativos
(LEPTA) DL 267/85 de 16 Julho. Tratou-se de uma reforma de fundo, que balizou adequar
a regulação da justiça administrativa às opções constitucionais de plena
jurisdicionalização e de protecção jurídica subjectiva. Deste modo, estabeleceu-se
a possibilidade de recurso contencioso contra actos administrativos
independentemente da forma (art.25ºnº2 LEPTA). A organização do recurso de
anulação surgiu como um verdadeiro processo de partes, em que o particular e
administração possuem igual possibilidade de intervir no processo (princípio do
contraditório). Criou-se a possibilidade de impugnação contenciosa dos regulamentos
administrativos (63º e ss LEPTA) e um novo meio principal, a acção para o
reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos (69º e ss
LEPTA). Criou-se também a intimação para consulta de documentos ou passagem de
certidões (82º e ss LEPTA) e a intimação para um comportamento (86º e ss
LEPTA). Considera-se porém que a reforma de 1984/1985 foi insuficiente, já que,
em resultado da deficiência técnica legislativa adoptada, não procedeu à
revogação global da legislação reguladora do contencioso administrativo,
mantendo em vigor numerosas disposições contidas em diplomas elaborados no
quadro da anterior ordem constitucional. Esta situação era geradora de dúvidas
pois não permitia saber exactamente quais as normas dos diplomas anteriores que
tinham sofrido revogação ou que se encontravam em vigor; impunha dificuldades
obrigando o interprete e o aplicador do direito a analisar e aplicar diversos
diplomas para encontrar a regra processual aplicável e transparecia incongruências,
pois nem sempre era possível a compatibilização de diplomas elaborados no
âmbito de ordens constitucionais diferentes .
A revisão de 1989 implicou uma radical transformação do
compromisso constitucional acerca do modelo de contencioso administrativo em
prol da acentuação da respectiva jurisdicionalização e subjectivação. Estabeleceu-se
que os tribunais administrativos e fiscais constituiam jurisdição própria, ou
seja, houve uma consumação da institucionalização plena da justiça administrativa.
Esta institucionalização vem associada ao reconhecimento de que ela tem por
objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e
fiscais, que é decisivo do ponto de vista substantivo, pois o particular deixou
de ser entendido como um administrado (mero objecto do poder), para passar a
ser um sujeito do direito que estabelece relações com a administração e, do
ponto de vista processual, pois a doutrina clássica via o contencioso como uma realidade
objectiva e limitada à verificação da legalidade, enquanto que agora o
particular e a administração passam a ser considerados como sujeitos
processuais, num processo de partes, que tem como principal objectivo a
protecção dos direitos individuais. Outra questão decisiva é o desdobramento da
garantia constitucional de acesso à justiça administrativa em dois direitos
fundamentais, o recurso de anulação (268ºnº4 CRP) e outros meios processuais
(268ºnº5 CRP), resultando deles o princípio constitucional de protecção
jurisdicional plena e efectiva dos particulares. As consequências que daqui
advieram foram o alargamento do universo dos actos administrativos susceptíveis
de impugnação contenciosa, a alteração do compromisso constitucional originário
da constituição conduzindo, em simultâneo, tanto à subjectivação do recurso
contencioso como á transformação do acto administrativo. Agora os actos a
tutelar neste sentido são actos praticados no termo de um procedimento
conjuntamente com actos preliminares ou intermédios, actos praticados por
superior hierárquico e/ou subalternos e, actos de conteúdo regulador de uma
situação jurídica e actos de natureza prestadora ou conformadora. Não obstante,
a garantia de recurso contencioso era ainda completada com um direito
fundamental de acesso à justiça administrativa, independentemente do meio
processual (principal, acessório ou complementar) que estivesse em causa. O
contencioso não se esgotava no recurso de anulação. Qualquer direito particular
necessitado de tutela, no âmbito de uma relação jurídica administrativa,
deveria encontrar um meio processual adequado para o fazer valer.
Assim sendo, a ligação dos dois direitos fundamentais
tornava inequívoca a consagração do princípio da tutela plena e efectiva dos
direitos dos particulares, que é a matriz do modelo constitucional de
contencioso administrativo, de natureza subjectiva, destinado a garantir o
primado dos direitos dos particulares nas relações jurídicas administrativas. Tais
transformações do compromisso constitucional relativo ao contencioso não
logravam encontrar a necessária realização na prática constitucional. Uma tal
ausência de concretização das opções constitucionais, designadamente, que
permitisse alterar o regime jurídico dos diferentes meios processuais e/ou
criar novos meios destinados a assegurar a plena e efectiva tutela dos direitos
dos particulares, assim como possibilitar o alargamento do universo dos actos
impugnáveis a fim de os compatibilizar com a noção de acto lesivo, constituía
uma grave omissão do legislador, numa matéria fundamental para a realização do
estado de direito.
A Lei 83/95 de 31 de Agosto veio regular o direito
fundamental de acção popular, dando alguma concretização constitucional,
desenvolvendo uma vertente objectiva do acesso à justiça, particularmente
relevante no domínio do contencioso administrativo. Contudo parece existir
alguma confusão entre acção popular, acção colectiva e acção para defesa dos
interesses individuais. Na opinião do Prof. Vasco Pereira da Silva, distingue-se
a acção para defesa dos interesses próprios, de indivíduos ou de associações, da
acção popular, destinada em primeira linha à defesa da legalidade e do
interesse público, mas que pode ainda ser igualmente utilizada para defesa de
interesses homogéneos de pessoas ou grupos de pessoas, quando se esteja perante
interesses privados indissociáveis, cuja individualização seja (teórica ou
praticamente) impossível. Entendida neste sentido, que a acção popular
representava uma forma de alargamento da legitimidade, que acresce á protecção
jurídica subjectiva, desenvolvendo a vertente objectiva do contencioso
administrativo. Esta lei da acção popular veio então regular um aspecto
importante da vertente objectiva do contencioso administrativo, concretizando a
lei fundamental (CRP), contudo, não combateu eficazmente os défices de
realização da constituição através da lei, pois permanecia a necessidade de dar
cumprimento às disposições constitucionais que estabeleciam um sistema de
justiça administrativa, que tem como prioridade a realização plena e efectiva
dos direitos dos particulares nas relações administrativas.
Seguidamente,
entende-se que as principais disfunções na organização da justiça
administrativa seriam a confusão da competência para decidir litígios
administrativos em 1ª e 2ª instância, no mesmo órgão jurisdicional, em vez de
ser exclusivamente o tribunal de recurso, o que gerava acumulação excessiva de
processos no STJ e a ausência de tribunais especializados em função da matéria.
Conclui-se que nem a lei da acção popular, nem as alterações ao ETAF foram
capazes de diminuir a separação existente entre o modelo constitucional do
contencioso administrativo e a sua realização legislativa. A tarefa de realização
da constituição dirigia-se em primeiro lugar, ao próprio legislador, o qual, ao
não concretizar as disposições constitucionais relativas ao contencioso,
incorre em inconstitucionalidade por omissão, mas também cabe aos tribunais e
demais aplicadores, sobretudo quando existe um sistema de fiscalização
jurisdicional da constitucionalidade das leis.
Já a revisão de 1997 veio implementar outra alteração
ao compromisso constitucional em matéria de contencioso administrativo no
sentido da sua integral jurisdicionalização e subjectivização. O legislador
constituinte vem reafirmar as grandes opções de 1989 que foram a jurisdição
administrativa especial no âmbito do poder judicial (209º CRP), as relações
jurídicas administrativas como objecto do contencioso (211ºnº3) e a impugnabilidade
do acto lesivo (268ºnº4). Porém, o legislador constituinte vem também regular
de um modo novo a garantia constitucional de acesso à justiça administrativa. Esta
reformulação passa essencialmente pela colocação no centro do processo
administrativo do princípio da protecção plena e efectiva dos direitos dos
particulares; pela consagração de um sistema de plena jurisdição, em que o juiz
goza de todos os poderes necessários e adequados à protecção dos direitos dos
particulares, independentemente dos meios processuais que estiverem em causa,
ou de se tratar de tutela principal, cautelar ou executiva; e pela inclusão
expressa do direito fundamental de impugnação de normas no conteúdo da garantia
constitucional. Trata-se aqui de uma alteração material do entendimento de
direitos fundamentais de acesso à justiça administrativa. Para o legislador
constituinte a protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares é
garantida através de sentenças cujos efeitos vão da simples apreciação e
reconhecimento de direitos, à condenação da administração, passando pela
impugnação dos actos administrativos, assim como das adequadas medidas
cautelares. O que aqui se baliza não são os meios processuais, mas os efeitos
das sentenças (impugnação, reconhecimento de direitos, determinação pratica de
actos administrativos legalmente devidos). Isto significava a superação de
todos os “complexos de infância difícil” do contencioso administrativo, que se
tinha agora transformado num contencioso pleno e subjectivo, em que os efeitos
das sentenças dos tribunais administrativos não se defrontam com qualquer
limitação “natural” ou “congénita”, antes devem ter por critério e medida a
plenitude e efectividade dos direitos dos particulares necessitados de tutela.
Tais opções do legislador constituinte, constantes de
um direito de acesso à justiça administrativa, de natureza. Análoga aos
direitos, liberdades e garantias, gozavam desde logo de aplicabilidade imediata
(art.º 18ºCRP). Mas, a aplicabilidade directa das normas constitucionais em
matéria de acesso à justiça não dispensava a necessária intervenção do
legislador, de modo a concretizar o modelo de contencioso administrativo da lei
fundamental. Pois, se em face do texto da revisão constitucional de 1989 se
deveria considerar uma inconstitucionalidade por omissão de realização das
normas fundamentais em matéria de justiça administrativa, então agora o
desfasamento do legislador ordinário em relação à lei fundamental já levava um
atraso de duas revisões constitucionais, pelo que era preciso uma reforma
urgente.
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