" Em vez de se reconhecer que julgar a Administração é ainda julgar, preferia-se considerar que julgar a Administração é ainda administrar [...] o resultado desta situação é paradoxal: em nome da separação dos poderes entre a Administração e a Justiça o que verdadeiramente se realiza é a indiferenciação entre as funções de administrar e julgar."
A dificuldade em reconhecer que "julgar a Administração é ainda julgar" preferindo-se considerar que " julgar a Administração é ainda administrar", obriga a conhecer o passado do Direito Administrativo.
Para entender aquelas palavras é preciso viajar no tempo e parar em certos momentos. É preciso acompanhar o nascimento do Direito Administrativo , o seu crescimento e o seu desenvolvimento ao longo dos anos e analisar certas experiências traumáticas pelas quais passou.
São duas as experiências traumáticas do Direito Administrativo:
1) A sua ligação originária a um modelo de Contencioso dependente da Administração.
O Contencioso administrativo teve o seu surgimento com a Revolução Francesa, sendo concebido como privilégio do foro e da Administração, destinado a garantir a defesa dos poderes públicos e a não assegurar a proteção dos direitos dos particulares. Atribuía-se aos órgãos da administração a tarefa de se julgarem a si mesmos - juiz de trazer por casa - conceito criado através de uma interpretação francesa do Princípio da Separação de Poderes. Este foi o sistema que assentou na confusão entre a função de administrar e a função de julgar, na promiscuidade entre poder administrativo e o poder judicial.
2) As circunstâncias que estão na base da afirmação da sua própria autonomia enquanto ramo do Direito.
Verificou-se aqui uma maior preocupação em garantir a Administração do que os direitos dos particulares.
O Professor Vasco Pereira da Silva apresenta como exemplo o caso julgado no Tribunal de Bordéus.
Assim, pode-se concluir que o poder especial - Direito Administrativo - surge com a necessidade de limitar a responsabilidade da Administração. Ou seja, o nascimento do Direito Administrativo está associado à negação dos direitos dos particulares.
O Professor Vasco Pereira da Silva, organiza o crescimento e desenvolvimento do Contencioso Administrativo em fases, correspondendo esta - primeira fase - à fase do Pecado Original, onde se encontra um sistema de administrador-juiz.
Esta fase do Direito Administrativo foi instituída pela Revolução Francesa e o pecado é a promiscuidade entre as tarefas de administrar e de julgar, uma vez que a justiça administrativa nasceu dentro da Administração.
São três as fases principais da evolução do Contencioso Administrativo, as quais coincidem também com a evolução do Estado:
1) A fase do "pecado original" que corresponde à fase do seu nascimento, revelando várias configurações até chegar ao sistema da "justiça delegada";
2) A fase do "Batismo", pronunciada na transição do século XIX para o século XX;
3) A fase do "Crisma" ou da "Confirmação", caracterizada pela reafirmação da natureza do Contencioso Administrativo.
Iremos aprofundar nesta exposição a fase correspondente ao "Pecado Original".
Como já foi referido o pecado do Contencioso Administrativo é o da promiscuidade entre as funções de administrar e as de julgar.
O Decreto de 22 de Setembro de 1789, proibiu os Tribunais judiciais de interferiram na esfera da Administração, determinando que os juízes não podiam perturbar as operações dos corpos administrativos, nem citar os administradores para julgamento.
Esta proibição foi justificada pelos franceses invocando o Princípio da Separação de Poderes, mas fazendo uma interpretação errada dele, que mais tarde veio a ficar conhecida como a "conceção francesa". Segundo esta conceção entendia-se que julgar a Administração era ainda julgar, preferindo-se entender que julgar a Administração é ainda administrar e que a jurisdição era o complemento da ação administrativa.
Esta conceção fez levantar muitas críticas, pois na verdade o que dela resultou foi a indiferenciação entre as funções de administrar e de julgar. O Princípio da Separação de Poderes que foi levantado a dogma liberal e concretizado em várias legislações, afinal nunca existiu, uma vez que dele não resultou a separação, mas sim a confusão entre administrar e julgar. Nasceu dele um sistema em que o administrador era juiz e o juiz era administrador.
Mas para perceber os acontecimentos passados na Revolução Francesa é preciso regressar ainda mais no tempo, é preciso regressar ao Antigo Regime e passar por estas quatro fases:
1) A conceção do Estado e da Separação de Poderes;
2) A reação contra a atuarão dos Tribunais no Antigo Regime;
3) A influência do modelo do Conselho do Rei;
4) A continuidade no funcionamento das instituições antes e depois da Revolução Francesa.
Em primeiro lugar, a noção de Estado originou um modo específico de entendimento do Contencioso Administrativo francês. Isto porque estava em causa a criação de um novo modelo de Estado e a separação de poderes era vista como elemento essencial desse novo modelo.
A ideia que estava por detrás dos poderes era a ideia de Estado "todo-poderoso", que originou a criação de um contencioso "especial", pois não podia ser julgado por qualquer juiz.
A existência de uma verdadeira jurisdição administrativa foi durante muito tempo pensada como contrária ao Estado. Mesmo quando essa jurisdição surgiu continuou a ser vista como um sistema de formação da vontade do Estado e não como verdadeiro Tribunal para fazer valer os direitos subjetivos dos particulares contra o Estado.
Em segundo lugar, a criação de um Contencioso "especial" para a Administração constituiu também uma reação dos revolucionários franceses contra a atuação dos tribunais na fase terminal do Antigo Regime, os quais tiverem um crucial papel na luta contra a concentração do poder real. As suas principais armas foram:
• os institutos do direito do registo, espécie de veto pelo Tribunal em relação às decisões régias;
• as censuras, instrumento de controlo das decisões administrativas.
Em terceiro lugar, quer a proibição aos tribunais comuns do julgamento da Administração, quer a criação de órgãos administrativos especiais destinados à realização dessas tarefas já existiam desde o tempo do Antigo Regime. Por um lado, a interdição do julgamento das controvérsias administrativas pelos tribunais é das mais antigas do Direito Francês; por outro lado, é a tentativa de defender a administração, traduzida na proibição do controlo por parte dos Tribunais judiciais, que justificou a criação dos órgãos administrativos especiais como sucede com o Conselho de Estado. O Conselho de Estado do ano VII e de 1806 é um retorno à antiga instituição do Conselho do Rei.
Isto determina, mais uma vez, que o Contencioso Administrativo é uma herança do Antigo Regime.
Por último, verifica-se uma continuidade de técnicas e instrumentos da Administração no Contencioso Administrativo francês antes e depois da Revolução. Pense-se por exemplo na técnica dos vícios do ato, considerada criação do Conselho de Estado, verifica-se que já vinha de trás, pois os termos "incompetência", "vicio de forma" e "violação da lei" eram já conhecidos dos Parlamentos.
De tudo isto resulta que no Contencioso Administrativo " se mesclam velhas receitas monárquicas com novo princípios e ideias liberais".
Bibliografia: Vasco Pereira da Silva, "O Contencioso no Divã da Psicanálise - ensaio sobre as ações no novo processo administrativo", 2ª edição, 2009.
Inês Mourão
Nº 20959
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