A arbitragem
constitui uma técnica de resolução de litígios, fora do quadro dos tribunais
que integram a jurisdição pública – corresponde a um negócio jurídico processual
através do qual as partes atribuem legitimidade para resolver conflitos a
tribunais sem ou com natureza permanente (arbitragem não institucionalizada e
institucionalizada, respetivamente), constituídos ad hoc. A arbitragem constitui um meio de resolução de litígios
adjudicatório, uma vez que a decisão é confiada a terceiros (árbitros), sendo
que a decisão final proferida no âmbito da arbitragem é vinculativa para as
partes.
A arbitragem
representa um meio de tutela efetiva dos cidadãos, trazendo a possibilidade de
uma justiça mais célere - as partes
podem fixar o prazo para a decisão e, não havendo acordo entre eles, o prazo
para a decisão será de seis meses - , adequada e mais económica - visto que a celeridade dos tribunais
arbitrais pode implicar, por exemplo, menos danos para as partes. Mas serão apenas vantagens que este modelo
alternativo de resolução de litígios apresenta? Não devemos ter em conta os
inconvenientes? É a arbitragem em Direito Administrativo é um problema ou uma
solução? Esta é a questão a que nos propomos dar resposta. Antes disso, há que
considerar vários aspetos e conhecer melhor a arbitragem em Direito
Administrativo.
Não vigora, em
Portugal, uma reserva de jurisdição estadual no que concerne aos litígios que
envolvam a Administração Pública: é desde há muito pacífico o entendimento de
que as entidades públicas se podem comprometer em árbitros relativamente a
litígios de Direito Administrativo correspondentes ao contencioso de plena
jurisdição, respeitante à interpretação, validade ou execução de contrato
administrativos e à constituição em responsabilidade civil por danos causados
pela Administração no âmbito da sua atividade de gestão pública. Com efeito, o
art. 209º CRP, ao enunciar as categorias de tribunais que são admitidas na
ordem jurídica portuguesa, refere-se aos tribunais arbitrais (nº2).
De acordo com o art.
181º/1 CPTA, o tribunal arbitral funciona nos termos da lei sobre a arbitragem
voluntária (doravante, LAV). Ora, nos termos do art. 1º/1 desta lei, os litígios
podem ser cometidos pelas partes à decisão de árbitros, mediante convenção de
arbitragem, sendo que esta pode consistir num compromisso arbitral ou numa
cláusula compromissória, consoante o litígio seja atual ou eventual,
respetivamente. Do mesmo modo, as partes podem considerar abrangidas na dita
convenção não apenas questões de natureza contenciosa em sentido estrito, mas
também as relacionadas com a necessidade de precisar, completar, atualizar ou
mesmo rever os contratos ou as relações jurídicas que estão na origem das
convenções (art. 1º/3 LAV), disposição que pode – e deve – ser aplicada no
âmbito das relações jurídicas administrativas.
A admissibilidade da
arbitragem em matéria administrativa não resulta da consagração legal, com
carácter geral, de um critério único de arbitrabilidade, que resulte da LAV.
Pelo contrário, é ao legislador que compete eleger o critério ou os critérios
que o hão de orientar na identificação dos casos concretos ou dos domínios
genéricos em que entenda dever autorizar a submissão da resolução de litígios
de direito público à decisão de árbitros. No ordenamento jurídico português, é
ao Direito Administrativo que, em diploma ou diplomas próprios, cumpre definir
um regime próprio no que toca aos critérios de arbitrabilidade a adoptar no
âmbito das relações jurídicas administrativas.
Presentemente, o
Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), regula a matéria da
arbitragem nos artigos 180º a 187º. No que se refere à delimitação do âmbito
das matérias que podem ser submetidas, enuncia, no art. 180º, um elenco de
matérias para cujo julgamento, pode ser constituído tribunal arbitral; e o art.
187º habilita o Estado a autorizar a instalação de centros de arbitragem
permanente destinados à composição de litígios no âmbito de um conjunto mais
alargado de matérias. Este conjunto de previsões suscita algumas dificuldades.
E porquê?
Porque as sucessivas
e incoerentes brechas que o legislador nacional tem vindo a abrir no
“tradicional edifício da inarbitrabilidade” de questões relativas a atos
administrativos conduziram a um conjunto desarmónico de previsões de
arbitrabilidade nessa matéria que, por não se sustentarem em critérios lógicos,
não permitem delimitar de modo coerente as matérias que são passíveis de serem
submetidas a arbitragem – a maior das incongruências resulta dos limites que
são impostos à admissibilidade da arbitragem sobre a legalidade de atos
administrativos.
Não podemos, no
entanto, olhar para este obstáculo como um inconveniente da arbitragem, como um
problema – simplesmente, a solução, nesta matéria, devia ser outra. E qual?
Bem, o caminho deveria passar por se abdicar, por falta de um critério
coerente, de uma enunciação pela positiva das matérias de Direito
Administrativo que são passíveis de ser submetidas a arbitragem e se procurarem
identificar limites coerentes que, pela negativa, permitam identificar as
matérias que não devem poder ser submetidas a arbitragem. Todos os tipos de
matérias seriam, à partida, passíveis de arbitragem, incluindo no domínio da
fiscalização da legalidade de atos administrativos, sem restrições difíceis de
interpretar. E, em contrapartida, haveria que ressalvar as situações que, por
contenderem com mais relevantes interesses públicos ou dizerem respeito a direitos
indisponíveis dos particulares nas suas relações com a Administração, deveriam
ser reconhecidas como sendo objeto de uma reserva constitucional da jurisdição
do Estado e, como tais, vedadas à arbitragem.
Forçoso parece ainda
reconhecer, e contra afirmações em sentido contrário, que a arbitragem não
deixa de envolver a participação das partes na determinação do modo pelo qual o
litígio será decidido, uma vez que a elas pertence a opção de lançar mão da via
arbitral e de designar os árbitros, mas não depende do assentimento das partes
e, portanto, da sua participação coconstitutiva na determinação da solução a
dar ao litígio. E mais: os poderes que os árbitros exercem não são poderes originários
das partes, que neles sejam por elas delegados, mas poderes de natureza
jurisdicional, em que os árbitros são investidos por vontade das partes, mas
que não lhe são transmitidos por elas. A arbitragem é um instrumento de
heterodefinição, mediante o qual os árbitros são investidos no exercício da
função jurisdicional, e não em poderes delegados de disposição que lhes sejam
confiados pelas partes.
Tradicionalmente, são
(ou eram) colocados os seguintes obstáculos à arbitragem no Direito
Administrativo: a concepção de que a natureza pública do sujeito tornaria
incoerente a sua subtração à jurisdição estatal – este argumento, fruto da concepção que via no recurso dos entes
públicas à arbitragem um golpe na soberania estatal, esquecendo que a resolução
arbitral de litígios é uma resolução jurisdicional, seria facilmente contornado
através de demarcação de áreas onde o jus imperii não fosse ameaçado; a inderrogabilidade das normas sobre
competência dos tribunais administrativos – se outras razões não depusessem
contra a introdução da arbitragem no domínio jus-administrativo, sempre se
haveria de entender que a norma que define a competência dos tribunais
estaduais, vale sem prejuízo da possível derrogação ou exceção provocada por
compromissos arbitrais ou cláusulas compromissórias, nada obstando que a lei
coloque na vontade das partes a modificação da competência destes tribunais
face a situações concretas; e ainda, sobretudo, a sujeição da administração ao
princípio da legalidade e ideia de indisponibilidade dos poderes dos órgãos
administrativos - basta a existência de
uma autorização legislativa para que a legalidade não seja atingida com o
recurso a árbitros e, quanto à indisponibilidade, mais não implicaria do que
reconhecer a necessária circunscrição do campo da arbitrabilidade dos litígios
jurídico-administrativos às zonas de disponibilidade da Administração sobre a
situação jurídica em causa.
Os obstáculos
apresentados podem, quando muito, implicar limite à arbitragem no Direito
Administrativo, mas não afastá-la. Para além disso, cabe pesá-los com as razões
que justificam o recurso à arbitragem: o caráter mais expedito da justiça
arbitral, que assume particular relevância num contexto de lentidão crescente
da tramitação processual e de generalizada ineficiência dos tribunais
administrativos; a mais adequação das soluções proporcionadas por árbitros
dotados de qualificações e conhecimento técnicos especiais, capazes de
responder à complexidade dos litígios, a possibilidade de o recurso à
arbitragem funcionar como mecanismo flexibilizador do Direito aplicável pela suscetibilidade
de os árbitros julgarem segundo a equidade.
Bibliografia
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- · Andrade, José Carlos Vieira de, A justiça administrativa, Coimbra, Almedina, 2009
- · Almeida, Mário Aroso de, Sobre o âmbito das matérias passíveis de arbitragem de direito administrativo em Portugal, In: Estudos em homenagem a Miguel Galvão Teles, vol. 2, Coimbra, 2012
- · Correia, Sérvulo, A arbitragem dos litígios entre particulares e a Administração Pública sobre situações regidas pelo Direito Administrativo, In: Estudos em memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra, 2014
- · file:///Users/utilizador/Downloads/A.7__2010__-_p.171-186_2_.pdf
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