Impugnação
de Normas no Contencioso Administrativo
O conceito de regulamento
administrativo encontra-se devidamente tipificado no actual artigo 135º do
Código do Procedimento Administrativo (CPA), ao referir que “Para efeitos do
disposto no presente Código, consideram-se regulamentos administrativos as
normas jurídicas gerais e abstractas que, no exercício de poderes
jurídico-administrativos, visam produzir efeitos jurídicos externos”.
A impugnação de normas
administrativas aplica-se portanto, a todas as normas jurídicas gerais e
abstractas – ou que possuam apenas uma dessas características – que provém de
autoridades públicas e/ou de particulares que participem no exercício da função
administrativa. Exclui-se deste preceito os actos que sejam materialmente
administrativos e igualmente as normas jurídicas dispostas no âmbito da função
legislativa.
Recordando
o regime histórico subsistente à data da reforma do Contencioso Administrativo,
e segundo a opinião do Professor Vasco Pereira da Silva, antes de 1985 a
reacção contenciosa em sentido contrário aos regulamentos administrativos,
podia ser exercida de três formas distintas: i) Através da via incidental, que consistia no fundo, numa
apreciação indirecta do regulamento administrativo. Na existência de um
regulamento ilegal que legitimasse a prática de um determinado acto, ao
declarar a nulidade do acto, o tribunal poderá igualmente desaplicar o regulamento
ilegal que servia de fundamento ao acto. Era uma espécie de incidente da
questão principal. ii) Outra
forma de reacção seria através de um meio processual genérico, previamente
regulado nos artigos 66 e seguintes da Lei de Processo dos Tribunais
Administrativos (LEPTA). Este meio podia ser utilizado contra qualquer norma
regulamentar, independentemente do órgão ou entidade que a tivesse emanado,
tendo apenas como requisito a exequibilidade da norma, ou desta, já ter sido
declarada ilegal em três casos concretos. iii)
O terceiro meio de reacção contenciosa consistia num meio processual especial,
no qual a impugnação das normas respeitava apenas os regulamentos provenientes
da administração local comum (órgãos da Administração Pública Regional ou
Local, das Pessoas Colectivas de Utilidade Pública Administrativa e dos
Concessionários, dos artigos 51º, nº1 do Decreto-Lei 129/84). Poder-se-á
afirmar que era uma via bastante mais restrita, embora estivesse imune às
condições estabelecidas para a via anterior.
Este enquadramento jurisprudencial
permite uma visão abrangente do desenvolvimento jurídico em sede de impugnação
de normas administrativas. É visível a ideia de dualidade de meios processuais
até 1985 – meio processual genérico e meio processual especial – e ainda numa
análise aos antecedentes históricos constitucionais, importa referir a reforma
de 1997, na qual o artigo 268º, nº5 da Constituição da República Portuguesa
(CRP), aditou o direito de impugnação judicial directa de normas
administrativas com eficácia externa, quando estas prejudiquem direitos ou
interesses legalmente protegidos dos particulares.
Na
reforma do Contencioso Administrativo de 2004, uma das suas principais
orientações prendeu-se com o estabelecimento de um regime uniforme,
estabelecendo-se como padrão, o meio processual genérico. Esta uniformização do
contencioso regulamentar, no entender do Professor Vasco Pereira da Silva,
violava o direito fundamental de impugnação de normas jurídicas lesivas dos
direitos particulares – o supracitado artigo 268º/5 da Constituição da
República Portuguesa – por referir, expressamente, na letra do artigo 73º/2 do
CPTA, que em casos de declaração de ilegalidade, quando se trate de uma norma
jurídica exequível, esta apenas produz efeitos no caso concreto, o que no seu
entender, tratar-se-ia de uma restrição afecta à extensão e alcance do conteúdo
essencial do direito.
Segundo
o Professor Vieira de Andrade, a reforma do Contencioso Administrativo de 2004,
permitiu delinear duas modalidades de impugnação de normas, uma vez que se
decalcam dois tipos de pedidos, o (1)
pedido de declaração com força obrigatória geral e o (2) pedido de declaração de ilegalidade no caso concreto.
Importa frisar que aquando da
reforma de 2004, previu-se que se efectuasse a revisão do CPTA decorridos três
anos da sua entrada em vigor. Tal não sucedeu, já tinham decorrido mais de dez
anos e urgia a necessidade de modernização da justiça administrativa
portuguesa, de forma a poder adaptar-se igualmente ao novo Código de Processo
Civil (CPC). A recente reforma de 2015, que irei abordar de seguida, coloca um
fim à divisão clássica entre meios processuais, relativos à acção
administrativa genérica e especial.
1.
O
Novo Regime de Impugnação de Normas Administrativas
A
impugnação de normas no contencioso administrativo tem por objecto a declaração
da ilegalidade de normas administrativas com fundamento em vícios próprios ou
decorrente da invalidade de actos praticados no âmbito do procedimento de
aprovação (artigo 72º/1 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos,
vulgo, CPTA). Nestes casos o lesado obterá o reconhecimento, com força
obrigatória geral, de que a norma em questão é comprovadamente ilegal. Este
regime não sofreu qualquer alteração com a introdução do novo Código de
Processo dos Tribunais Administrativos, uma vez que o legislador manteve as
duas modalidades de impugnação de norma. Refiro-me à impugnação de normas com
força obrigatória geral e à impugnação de normas sem força obrigatória geral.
Tem
legitimidade para impugnar normas administrativas qualquer interessado
directamente prejudicado pela vigência da norma ou que possa previsivelmente vir a
sê-lo num momento próximo, independentemente da prática de acto concreto de
aplicação (artigo 73º/1 do CPTA), ao contrário do que referia a disposição
anterior que apenas atribuía legitimidade a qualquer interessado nos casos em
que a aplicação da norma tivesse sido previamente recusada, em qualquer
tribunal, em três casos concretos. É igualmente adicionado à letra do texto a
legitimidade dos presidentes de órgãos colegiais poderem impugnar normas
administrativas, desde que estas tenham sido emitidas pelos órgãos respectivos.
É ainda atribuída, tal como já sucedia anteriormente, legitimidade ao
Ministério Público – enquanto titular da acção pública administrativa - e
outras pessoas e entidades – enquanto titulares do direito procedimental de
acção popular - nos termos do artigo 9º,
nº 2, para impugnar normas administrativas.
É também adicionado o Ministério Público no artigo 73º, nº 3 nos pedidos de
impugnação da norma administrativa, nos casos em que os efeitos da norma não se
produzam imediatamente. É um acrescento que não tinha sido previsto no anterior
artigo 73º, nº2.
Interessa
ainda referir no âmbito dos pressupostos de impugnação das normas
administrativas, que quando o legislador refere como “norma imediatamente
operativa” no artigo 73º do CPTA, está a referir-se em concreto às normas com
eficácia externa (artigo 135º do Código do Procedimento Administrativo).
Relativamente
à existência de prazo para a declaração de ilegalidade, esta é uma novidade no
actual artigo 74º, nº 2 do CPTA em relação ao antigo artigo 74º, que dispunha
na sua anterior redacção que o pedido de declaração podia ser realizado a
qualquer momento. É, porém, pouco preciso, a assunção de que no anterior regime
não existia qualquer restrição temporal ao particular que desejasse intentar
determinada acção. Importa recordar que no referido regime jurídico era
necessária a existência de três casos de desaplicação da norma para que a
declaração de ilegalidade com força obrigatória geral pudesse ser intentada por
quem fosse prejudicado pela actuação da norma ou pudesse previsivelmente, vir a
sê-lo.
Foi
aditado o número 2 ao artigo 74º do CPTA, que refere o seguinte: “a declaração
de ilegalidade com fundamento em ilegalidade formal ou procedimental da qual
não resulte inconstitucionalidade só pode ser pedida no prazo de seis meses”. A
introdução do prazo máximo de seis meses a contar desde a data da publicação do
diploma regulamentar não se aplica aos casos de carência absoluta de forma
legal, nem tão pouco aos casos de preterição de consulta pública exigida por
lei.
Em
sede dos efeitos da declaração de ilegalidade, o legislador foi bastante
rigoroso ao aditar o número 5 ao artigo 76º, reforçando o efeito de repristinação
das normas revogadas – efeito que se encontrava mencionado no antigo número 1 –
explicitando que se encontram excluídas deste efeito repristinatório as normas
ilegais ou que tenham deixado de vigorar por outro motivo.
O
actual artigo número 1 excepciona os casos de ilegalidade superveniente, e foi
igualmente adicionado o número 3, que salvaguarda a eliminação dos efeitos
lesivos causados na esfera jurídica do autor nos casos em que se estabelece a
produção de efeitos apenas a partir da data do trânsito em julgado da sentença.
Mantém-se, desta forma, a regra geral de que os efeitos se produzem de uma
forma retroactiva (artigo 76º, nº1 do CPTA) – eficácia ex tunc – salvo os casos
em que é conferido ao tribunal o poder de determinar que os efeitos apenas se
produzam para o futuro (artigo 76º, nº2 do CPTA) – eficácia ex nunc – quando se
justifique pelo conjunto de razões enumeradas no próprio artigo.
No
que diz respeito à impugnação sem força obrigatória geral, que se encontra
prevista no artigo 73º, nº2 do CPTA e apesar dos efeitos não se encontrarem
propriamente previstos na lei, parece-me que a actual posição doutrinária de que
se produzem de uma forma retroactiva e igualmente repristinatória, é a que fará
mais sentido.
Abordadas
as alterações ao CPTA no âmbito da impugnação de normas administrativas, parece-me
notória a simplificação e clarificação do regime actual. Ainda assim, refira-se
que o motivo das criticas do Professor Vasco Pereira da Silva relativas à
modalidade de impugnação sem força obrigatória geral se mantenha inalterável,
ao produzir efeitos apenas no caso concreto, o que na sua óptica, é ilógico.
Pedro Azevedo Rocha,
nº 22116.
Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso de - Manual de Processo Administrativo (2010);
ANDRADE, José Carlos Vieira de - A justiça Administrativa (2015);
SILVA, Vasco Pereira da - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise (2009);
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