A Reserva de Administração em face do Poder Judicial
Na análise do fundamento da
reserva de Administração em face do Poder Judicial somos confrontados com
normas e princípios jurídicos que nos parametrizam esta realidade, bem como
realidades de ordem prática que também entram nessa mesma equação.
Encontramos
como ponto de partida desta reflexão, o Princípio da Separação de Poderes.
Importa referir que este princípio, consagrado no art.º 111º da Constituição da
República Portuguesa deve ser entendido e interpretado em harmonia com um outro
princípio com dignidade constitucional: o princípio da garantia do controlo
judicial da atividade administrativa. Diz-nos o art.º 268/4 da C.R.P. que é “garantida aos administrados tutela
jurisdicional efetiva dos seus direitos legalmente protegidos”, porém esse
controle judicial esbarra na separação de poderes, e em particular na conceção
do legislador quanto à definição e limites do Poder Judicial.
Como nos
diz BERNARDO AYALA, “os tribunais
perderiam o seu atributo principal – a independência – se admitíssemos que eles
têm poderes para tomar decisões baseadas numa livre escolha, de acordo com
critérios de interesse político-administrativo nacional, regional ou local”. Tal
constatação parece evidenciar o perigo de o juiz se transformar em
“administrador” e extravasar as funções de controlo o nosso sistema
constitucional designou para o poder judicial, pelo normalmente se tem remetido
para a dicotomia legalidade “versus”
mérito, que veremos adiante.
Em Portugal, o controlo do mérito é da
exclusiva responsabilidade da Administração, sendo que pelo mesmo se tem
entendido, como opina FREITAS DO AMARAL, a avaliação e verificação do “bem
fundado da decisão, independentemente da sua legalidade”. O mesmo autor refere
que este controlo normalmente vem associado a duas ideias fundamentais: a
Justiça e a Conveniência.
A Justiça,
entendida como a adequação do ato praticado pela Administração ao interesse público
que o mesmo prossegue e os efeitos produzidos na esfera dos particulares, faz
hoje parte da legalidade, em virtude do art.º 266/2 da CRP que consagrou o
princípio formal da Justiça, e como tal, deixou de fazer parte da apreciação de
mérito dos atos da administração pública.
Não
obstante, a conveniência mantém a sua importância nesta matéria. FREITAS DO
AMARAL reconduz esta ideia à seguinte conceptualização: “A conveniência do ato,
é a adequação desse ato ao interesse público específico que justiça a sua
prática ou à necessária harmonia entre tal interesse e os demais interesses
públicos afetados pelo ato”.
Esta mesma
ponderação da conveniência, a ser feita pelos tribunais consubstanciaria, per si, uma violação do princípio da
Justiça, uma vez que os tribunais quando comparados com a Administração têm uma
menor aptidão estrutural que não pode ser obnubilada. Ora vejamos, a
Administração Pública dispõe de meios técnicos, científicos, funcionais e
procedimentos que os tribunais não estão dotados, para além de importantes
fatores como a experiência e acesso à informação, que são garante de decisões
justas para os cidadãos no caso concreto, devidamente enquadradas na realidade
nacional, regional ou local em matéria de decisões administrativas.
Sustentando
esta posição, refere BERNARDO AYALA, que “os
tribunais não apresentam condições sólidas para se substituírem à Administração
na feitura, em última instância, dos raciocínios de prognose típicos da margem
de livre decisão administrativa”.
Com
efeito, o facto de o mérito, na vertente conveniência, não poder ser controlado
judicialmente, não significa que os atos praticados pela administração no
exercício de poderes discricionários estejam isentos do controlo de legalidade
por parte dos tribunais administrativos. Ora, os atos vulgarmente designados
como discricionários podem ser impugnados: 1) com fundamento em incompetência
do órgão que praticou o ato; 2) com base em vício de forma, em particular pela
preterição de formalidades essenciais como a fundamentação da decisão ou outros
vícios relativos ao procedimento da mesma; 3) devido a violação de lei, por
ofensa a quaisquer barreiras que limitam este poder vincula como é o caso dos
princípios constitucionais da justiça, igualdade, proporcionalidade, boa-fé e
imparcialidade; e por fim, 4) por força de quaisquer defeitos da vontade, de
onde a prática da administração nos faz salientar o erro de facto.
É de
salientar, que as situações enunciadas no parágrafo anterior não se confundem
com o mérito da decisão, dizendo apenas respeito às prescrições legais que
vinculam a administração na prática de atos no exercício de poderes
discricionários, ou seja, os tribunais exercem nestes casos a sua habitual
função de controlo da legalidade e nada mais.
Importa
dizer também, que nem sempre foi assim, visto que até à entrada em vigor da
Constituição da república vigente, um ato legal mesmo que consubstanciasse uma
injustiça era insuscetível de ser impugnado, porque o entendimento positivista
do Contencioso Administrativo do Estado Novo limitava a atividade judicial à
pura e simples legalidade ou ilegalidade do ato.
De
seguida, é de analisar as consequências que a exclusão do controlo judicial da
margem de livre apreciação da administração representa para o administrado.
Desde logo, evita-se a perda na qualidade da decisão que necessariamente
adviria de uma decisão judicial nas matérias em questão, uma vez que, como já
referi, os tribunais não dispõem do mesmo leque de meios que a Administração.
Garante-se a igualdade material de entre os administrados, uma vez que só a
Administração tem conhecimento de como foram e como são analisadas e decididas
situações análogas. Por fim, os decisores administrativos, são muitas vezes
responsabilizados politicamente, ou seja, pelo eleitorado em função das suas
opções ao nível da conveniência dos atos administrativo que praticaram,
situação que não ocorre com o Magistrados Judiciais, que por sua vez estão
esvaziados, por natureza, da representatividade democrática que normalmente
assiste aos decisores administrativos.
Logo, em
face dos argumentos de facto e normativos que enunciei, considero não ser
possível o controlo judicial da margem de livre apreciação da Administração
pública, sob pena de violação do princípio da separação de poderes, hoje consagrado
no art.º 114 da CRP e do art.º 3/1 do Código de Processo dos Tribunais
Administrativos, que nos diz expressamente que “os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração
das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou
oportunidade da sua atuação.”
Logo,
afigura-se-me claro, que tanto a realidade e lógicas subjacentes, como a letra
da lei sustentam o entendimento de que não é legítimo aos Tribunais controlarem
o mérito das decisões administrativas tomadas no exercício de poderes
discricionários ou não totalmente vinculados.
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