sábado, 28 de novembro de 2015

O Contencioso Tributário, um Contencioso Pleno e de Legalidade

O Contencioso Tributário, um Contencioso Pleno e de Legalidade

Na definição de JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, o Processo Tributário “será o conjunto de atos concretizadores e exteriorizadores da vontade dos agentes jurisdicionais tributários”. Como tal, para uma melhor compreensão das especificidades do contencioso tributário, há que considerar e analisar os seus vetores fundamentais: O Contencioso tributário com um Contencioso Pleno e de Legalidade.

A plenitude, em geral significa, que os sujeitos passivos da relação tributária têm o direito de defender as suas posições judicialmente sempre que os efeitos de um ato tributário se repercutam na esfera desse particular, ou seja a plenitude do contencioso tributário nada mais é do que uma decorrência e imposição da tutela jurisdicional efetiva garantida aos administrados, neste caso contribuintes, pelo artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa: “ É garantido aos administrados tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas”.

Numa primeira linha de análise cabe analisar os meios de reconhecimento de direitos ou interesses, que vêm plasmados no artigo 145º do CPPT, que nos dá a conhecer a “ação para reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos”. Esta ação destina-se a permitir que o contribuinte, ao sentir que a Autoridade Tributária não o trata segundo um estatuto jurídico (ex. Situação económica difícil) que este considera ter, possa garantir judicialmente a sua posição, e com isso, vir a usufruir de benefícios fiscais ou outras vantagens de ordem fiscal inerentes a esse estatuto.

Seguidamente, cumpre analisar outra imposição de ordem constitucional: a exigência de meios de impugnação de atos lesivos para os contribuintes. Nessa medida o legislador consagrou um vasto leque de garantias jurisdicionais das quais se destacam o processo de impugnação de judicial (art.º 99º e ss. do CPPT), o processo de derrogação do sigilo bancário (art.º 146º-B do CPPT), a oposição à execução fiscal (art.º 203º e ss. do CPPT), a reclamação dos atos do órgão de execução (art.º 276º do CPPT), entre outros. Deste elenco, assume maior destaque o processo de impugnação de atos lesivos. Diz-nos o art.º 95º/1 da Lei Geral Tributária, que o “interessado tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o ato lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”, pelo que, podemos constatar que a previsão desta norma permite enquadrar uma vastidão de atos da administração tributária que vão da desde a liquidação dos tributos até aos atos praticados na execução fiscal, passando até pela fixação de valores patrimoniais tributáveis.

Concomitantemente, a lei fundamental também exige meios de determinação da prática de atos legalmente devidos, e nessa senda o art.º 147º/1 do CPPT refere que “em caso de omissão, por parte da Administração tributária, poderá o interessado requerer a sua intimação para o cumprimento desse dever junto do tribunal tributário competente. Este meio assume particular interesse por se afirmar como o meio idóneo para obrigar a Administração Tributária à prática de atos legalmente previstos, como por exemplo as devoluções atinentes ao IRS.

Por último, no que se reporta às exigências constitucionais quanto à tutela jurisdicional Tributária surge-nos a exigência de meios cautelares adequados. Ora, os exemplos paradigmáticos deste corolário da tutela do contribuinte são a possibilidade de o contribuinte impugnar judicialmente a providências cautelares que o tribunal intentou contra si prevista no art.º 144º do CPPT e a possibilidade de o próprio contribuinte interpor providências cautelares contra a administração prevista no art.º147º/6 do CPPT. Estes instrumentos de “reação rápida” são fundamentais uma vez que a administração tributária dispõe de poderes como a apreensão de bens, cuja verificação pode, em alguns casos, representar prejuízos irreparáveis para o sujeito passivo.

Quanto à legalidade, é de afirmar que o contencioso tributário apenas atendas à legalidade dos atos da administração tributária. Com tal, estão excluídas do âmbito jurisdicional dos tribunais tributários questões de mérito e de oportunidade, pelo que não será possível aos mesmos controlar os poucos atos tributários que não sejam no exercício exclusivo de poderes vinculados. Por exemplo, se a lei permitir a um determinado agente administrativo negociar a implantação de grandes empresas estrangeiras em Portugal mediante a concessão de benefícios fiscais específicos e casuisticamente estipulados, os tribunais tributários não poderão controlar este ato judicial.

Pedro Sousa Gonçalves



A Reserva de Administração em face do Poder Judicial

A Reserva de Administração em face do Poder Judicial

Na análise do fundamento da reserva de Administração em face do Poder Judicial somos confrontados com normas e princípios jurídicos que nos parametrizam esta realidade, bem como realidades de ordem prática que também entram nessa mesma equação.

Encontramos como ponto de partida desta reflexão, o Princípio da Separação de Poderes. Importa referir que este princípio, consagrado no art.º 111º da Constituição da República Portuguesa deve ser entendido e interpretado em harmonia com um outro princípio com dignidade constitucional: o princípio da garantia do controlo judicial da atividade administrativa. Diz-nos o art.º 268/4 da C.R.P. que é “garantida aos administrados tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos legalmente protegidos”, porém esse controle judicial esbarra na separação de poderes, e em particular na conceção do legislador quanto à definição e limites do Poder Judicial.

Como nos diz BERNARDO AYALA, “os tribunais perderiam o seu atributo principal – a independência – se admitíssemos que eles têm poderes para tomar decisões baseadas numa livre escolha, de acordo com critérios de interesse político-administrativo nacional, regional ou local”. Tal constatação parece evidenciar o perigo de o juiz se transformar em “administrador” e extravasar as funções de controlo o nosso sistema constitucional designou para o poder judicial, pelo normalmente se tem remetido para a dicotomia legalidade “versus” mérito, que veremos adiante.
 Em Portugal, o controlo do mérito é da exclusiva responsabilidade da Administração, sendo que pelo mesmo se tem entendido, como opina FREITAS DO AMARAL, a avaliação e verificação do “bem fundado da decisão, independentemente da sua legalidade”. O mesmo autor refere que este controlo normalmente vem associado a duas ideias fundamentais: a Justiça e a Conveniência.

A Justiça, entendida como a adequação do ato praticado pela Administração ao interesse público que o mesmo prossegue e os efeitos produzidos na esfera dos particulares, faz hoje parte da legalidade, em virtude do art.º 266/2 da CRP que consagrou o princípio formal da Justiça, e como tal, deixou de fazer parte da apreciação de mérito dos atos da administração pública.

Não obstante, a conveniência mantém a sua importância nesta matéria. FREITAS DO AMARAL reconduz esta ideia à seguinte conceptualização: “A conveniência do ato, é a adequação desse ato ao interesse público específico que justiça a sua prática ou à necessária harmonia entre tal interesse e os demais interesses públicos afetados pelo ato”.

Esta mesma ponderação da conveniência, a ser feita pelos tribunais consubstanciaria, per si, uma violação do princípio da Justiça, uma vez que os tribunais quando comparados com a Administração têm uma menor aptidão estrutural que não pode ser obnubilada. Ora vejamos, a Administração Pública dispõe de meios técnicos, científicos, funcionais e procedimentos que os tribunais não estão dotados, para além de importantes fatores como a experiência e acesso à informação, que são garante de decisões justas para os cidadãos no caso concreto, devidamente enquadradas na realidade nacional, regional ou local em matéria de decisões administrativas.

Sustentando esta posição, refere BERNARDO AYALA, que “os tribunais não apresentam condições sólidas para se substituírem à Administração na feitura, em última instância, dos raciocínios de prognose típicos da margem de livre decisão administrativa”.

Com efeito, o facto de o mérito, na vertente conveniência, não poder ser controlado judicialmente, não significa que os atos praticados pela administração no exercício de poderes discricionários estejam isentos do controlo de legalidade por parte dos tribunais administrativos. Ora, os atos vulgarmente designados como discricionários podem ser impugnados: 1) com fundamento em incompetência do órgão que praticou o ato; 2) com base em vício de forma, em particular pela preterição de formalidades essenciais como a fundamentação da decisão ou outros vícios relativos ao procedimento da mesma; 3) devido a violação de lei, por ofensa a quaisquer barreiras que limitam este poder vincula como é o caso dos princípios constitucionais da justiça, igualdade, proporcionalidade, boa-fé e imparcialidade; e por fim, 4) por força de quaisquer defeitos da vontade, de onde a prática da administração nos faz salientar o erro de facto.

É de salientar, que as situações enunciadas no parágrafo anterior não se confundem com o mérito da decisão, dizendo apenas respeito às prescrições legais que vinculam a administração na prática de atos no exercício de poderes discricionários, ou seja, os tribunais exercem nestes casos a sua habitual função de controlo da legalidade e nada mais.

Importa dizer também, que nem sempre foi assim, visto que até à entrada em vigor da Constituição da república vigente, um ato legal mesmo que consubstanciasse uma injustiça era insuscetível de ser impugnado, porque o entendimento positivista do Contencioso Administrativo do Estado Novo limitava a atividade judicial à pura e simples legalidade ou ilegalidade do ato. 

De seguida, é de analisar as consequências que a exclusão do controlo judicial da margem de livre apreciação da administração representa para o administrado. Desde logo, evita-se a perda na qualidade da decisão que necessariamente adviria de uma decisão judicial nas matérias em questão, uma vez que, como já referi, os tribunais não dispõem do mesmo leque de meios que a Administração. Garante-se a igualdade material de entre os administrados, uma vez que só a Administração tem conhecimento de como foram e como são analisadas e decididas situações análogas. Por fim, os decisores administrativos, são muitas vezes responsabilizados politicamente, ou seja, pelo eleitorado em função das suas opções ao nível da conveniência dos atos administrativo que praticaram, situação que não ocorre com o Magistrados Judiciais, que por sua vez estão esvaziados, por natureza, da representatividade democrática que normalmente assiste aos decisores administrativos.

Logo, em face dos argumentos de facto e normativos que enunciei, considero não ser possível o controlo judicial da margem de livre apreciação da Administração pública, sob pena de violação do princípio da separação de poderes, hoje consagrado no art.º 114 da CRP e do art.º 3/1 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, que nos diz expressamente que “os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua atuação.”

Logo, afigura-se-me claro, que tanto a realidade e lógicas subjacentes, como a letra da lei sustentam o entendimento de que não é legítimo aos Tribunais controlarem o mérito das decisões administrativas tomadas no exercício de poderes discricionários ou não totalmente vinculados. 

Pedro Sousa Gonçalves




quinta-feira, 26 de novembro de 2015


A Condenação à Emissão de Normas

            O mecanismo processual constante no artigo 77º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, foi introduzido pela reforma do Contencioso Administrativo de 2004.

Este dispositivo permite reagir contra a omissão ilegal de normas administrativas cuja adoção seja necessária para dar exequibilidade a atos legislativos de regulamentação.

            Este mecanismo já antes era proclamado por João Caupers¹ ao considerar que “a inércia regulamentar, para além do prazo razoável (…) constituía, por si mesma, violação de uma dever jurídico de regulamentar, decorrente, expressa ou implicitamente, da norma legal, daí resultando a necessidade de conceder aos tribunais administrativos o poder de, a instância dos interessados (…), ou do Ministério Público, preferirem sentença declarando aquela violação e fixando um prazo para produzir a regulamentação em falta”.

            Esta figura é inspirada na pronúncia de inconstitucionalidade por omissão que a Constituição da República Portuguesa institui e regula no artigo 283º. A solução de criar um regime para a condenação à emissão de regulamentos no Contencioso semelhante ou inspirado no regime de inconstitucionalidade por omissão constante na nossa Constituição foi proposta pelo Professor Paulo Otero. Essa proposta foi apresentada no âmbito da discussão pública da reforma.

            Consagrado este preceito, surge a possibilidade de em ação administrativa especial, se suscitar um pedido de apreciação da ilegalidade por omissão de normas regulamentares devidas, quer esse dever resulte, de forma direta, da referência expressa a uma lei concreta, quer esse dever decorra, de forma indireta, de uma remissão implícita para o poder regulamentar, em virtude da incompletude ou inexequibilidade do ato legislativo, artigo 77º/1 CPTA.

            Todavia, o número 2 do artigo 77º do CPTA já se distancia do que é estabelecido no artigo 283º/2 da CRP, na medida em que não se limita a conferir ao tribunal o poder de dar conhecimento da situação de omissão ao órgão competente, vai mais longe! É atribuído ao tribunal o poder de fixar uma prazo, não inferior a seis meses, dentro do qual a omissão deverá ser suprida.

            O Professor Mário Aroso de Almeida sustenta que o Código procurou uma via intermédia entre a solução de atribuir ao juiz um mero poder de declaração de omissão e a solução de lhe atribuir o poder de condenar a Administração à emissão do regulamento devido.  

            Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, embora esta sentença de declaração de ilegalidade por omissão de normas regulamentares se afaste das sentenças idênticas do Tribunal Constitucional por omissão de atos legislativos fica aquém de uma verdadeira e própria sentença incriminatória.

Na opinião do Professor Aroso de Almeida, a pronúncia declarativa de conteúdo impositivo parece estar mais próxima de uma sentença de condenação do que de uma sentença meramente declarativa ou de simples apreciação.

Retomando a opinião do Professor Vasco Pereira da Silva, nada impedia que se tivesse estabelecido a possibilidade de condenação da Administração na produção da norma regulamentar devida. Esta possibilidade em nada poria em causa o princípio da separação de poderes, já que seria necessário distinguir uma de duas hipóteses distintas:

A)    Situação em que existe um dever legal de emissão de regulamento, mesmo se a lei conferia à autoridade dotada de poder regulamentar uma ampla margem de discricionariedade na conformação do respetivo conteúdo. Caso em que o tribunal limitar-se-ia à condenação na emissão do regulamento, cabendo à Administração a responsabilidade pela escolha do conteúdo das normas administrativas nos limites fixados pela lei regulamentada. Onde o juiz poderia, somente, fornecer algumas indicações quanto ao modo correto de exercício do poder discricionário.

B)     Situação em que além do dever legal de emitir regulamento, existe também a obrigatoriedade do regulamento possuir um determinado conteúdo, pré-determinado pelo legislador. Neste caso, em que tanto a emissão do regulamento como o seu conteúdo resultam de vinculação legal, o Professor não vê razão para que não pudesse existir uma sentença de condenação na emissão de regulamento com determinado conteúdo.

O reconhecimento do dever de emissão do regulamento, dentro do prazo fixado pelo juiz, pode ser acompanhado da fixação de uma sanção pecuniária compulsória, de acordo com o regime geral dessa sanção (artigo 3º/2 do CPTA).

Para além disso, a inobservância do prazo é qualificada como um ato de desobediência em relação à sentença que habilita o beneficiário da mesma a desencadear os mecanismos de execução adequados, isto é, a fixação de um prazo limite com imposição de uma sanção pecuniária compulsória aos responsáveis pela persistência na omissão.

Para terminar, quanto à legitimidade para acionar este mecanismo cabe ao Ministério Público, às demais pessoas e entidades defensoras dos interesses referidos no artigo 9º/2 do CPTA e a quem alegue um prejuízo diretamente resultante da ação de “omissão”. Esta norma remete para as regras gerais da legitimidade da ação para defesa de direitos, da ação pública e da ação popular e não pretende estabelecer um regime especifico, devendo entender-se que a alegação do prejuízo diz respeito a uma posição jurídica subjetiva do particular.
 
 
¹. Cit. Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as ações do novo processo administrativo, 2ª edição, 2009, Almedina, p.430.
 
_________________________________
Bibliografia:
Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as ações do novo processo administrativo, 2ª edição, 2009, Almedina;
 
Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 5ª reimpressão da edição de Novembro de 2010, 2015, Almedina.
 
 
 
Inês Mourão
Número: 20959
 
 
 

 

 

terça-feira, 24 de novembro de 2015

A reforma do Contencioso Admnistrativo de 2000/2004

A reforma do Contencioso Administrativo de 2000/2004

Com a revisão da Constituição de ’97 introduziu-se um compromisso constitucional, no sentido da sua integral jurisdicionalização, reafirmando as grandes opções de ’89. Porém também aqui se criou um novo modo de garantir constitucionalmente o acesso à justiça administrativa. Este passou essencialmente por ‘trazer’ ao centro do processo o princípio da protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares, mas também a consagração de um sistema de plena jurisdição em que o juiz passa a gozar de todos os poderes necessários para a protecção dos direitos dos particulares. Para além de tudo isto, cabe ainda referir que se passou a entender que a impugnação de normas no conteúdo das garantias constitucionais, seria um direito fundamental do particular. Isto visava superar todos os aspectos da “infância difícil” do contencioso administrativo, que se transformava agora num contencioso pleno e subjectivo.

Contudo, chegámos assim ao final do séc. XX numa situação insustentável, em que o texto e a prática constitucional estavam em total discrepância. Iniciou-se então no ano 2000 um longo e atribulado procedimento legislativo que levou à reforma do processo administrativo.

O impulso da reforma deu-se com a apresentação de três anteprojectos submetidos a discussão pública, que não respondiam efectivamente às alterações de fundo que se pretendiam levar a cabo. Seguiu-se a fase da discussão pública em que participaram todos os interessados na justiça administrativa e a partir daí iniciaram-se os trabalhos da reforma. A tarefa de preparação dos textos coube ao Gabinete de Politica Legislativa e de Planeamento, que fixou as orientações politicas para a reforma do contencioso. A fase da decisão chegou, aquando a aprovação pela Assembleia da República. Assim, esta reforma iniciou-se em 2000, foi aprovada em 2001 e promulgada em 2002, e entrou em vigor a 2004. Veio regular importantes questões do contencioso administrativo – da organização dos tribunais administrativos – bem como o regime jurídico dos meios processuais em matéria principal, cautelar e executiva.

Tal como já referimos supra, esta reforma nasceu a partir da análise feita pela doutrina em colaboração com a jurisprudência, e surgiu por insustentabilidade do contencioso português – este não conseguiu suportar os traumas da “infância difícil”, cujos efeitos se prolongaram no tempo, quase até aos nossos dias. A forma encontrada para ultrapassar esses traumas foi através da constitucionalização e europeização do processo administrativo – que contemplaram expressamente o princípio da protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares.

Porém, nem tudo foi perfeito. Esta reforma de 2000/2004 ficou aquém em certas matérias, nomeadamente: na responsabilidade civil e extracontratual da administração pública (que fazia parte do pacote da reforma, mas não foi aprovado), no não alargamento da aplicação do CPTA ao âmbito da justiça tributária, e na necessidade de compatibilizar as novas normas da reforma com o CPA, nomeadamente às formas de actuação administrativa. Além de tudo isto, deixou também um défice de especialização na formação dos magistrados, na criação de tribunais administrativos em função da matéria, e na diminuta autonomização da carreira dos juízes dos tribunais administrativos, face á dos judiciais. O Prof. Vasco Pereira da Silva refere que a importância destas matérias obriga à ponderação de diferentes alternativas “abertas ao futuro”, e não limitadas pelos “traumas do passado”, de forma a evitar reformas precipitadas e minimalistas. 

Ana Margarida Duarte 22508

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Impugnação de Normas no Contencioso Administrativo

Impugnação de Normas no Contencioso Administrativo

            O conceito de regulamento administrativo encontra-se devidamente tipificado no actual artigo 135º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), ao referir que “Para efeitos do disposto no presente Código, consideram-se regulamentos administrativos as normas jurídicas gerais e abstractas que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visam produzir efeitos jurídicos externos”.
            A impugnação de normas administrativas aplica-se portanto, a todas as normas jurídicas gerais e abstractas – ou que possuam apenas uma dessas características – que provém de autoridades públicas e/ou de particulares que participem no exercício da função administrativa. Exclui-se deste preceito os actos que sejam materialmente administrativos e igualmente as normas jurídicas dispostas no âmbito da função legislativa.

Recordando o regime histórico subsistente à data da reforma do Contencioso Administrativo, e segundo a opinião do Professor Vasco Pereira da Silva, antes de 1985 a reacção contenciosa em sentido contrário aos regulamentos administrativos, podia ser exercida de três formas distintas: i) Através da via incidental, que consistia no fundo, numa apreciação indirecta do regulamento administrativo. Na existência de um regulamento ilegal que legitimasse a prática de um determinado acto, ao declarar a nulidade do acto, o tribunal poderá igualmente desaplicar o regulamento ilegal que servia de fundamento ao acto. Era uma espécie de incidente da questão principal. ii) Outra forma de reacção seria através de um meio processual genérico, previamente regulado nos artigos 66 e seguintes da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (LEPTA). Este meio podia ser utilizado contra qualquer norma regulamentar, independentemente do órgão ou entidade que a tivesse emanado, tendo apenas como requisito a exequibilidade da norma, ou desta, já ter sido declarada ilegal em três casos concretos. iii) O terceiro meio de reacção contenciosa consistia num meio processual especial, no qual a impugnação das normas respeitava apenas os regulamentos provenientes da administração local comum (órgãos da Administração Pública Regional ou Local, das Pessoas Colectivas de Utilidade Pública Administrativa e dos Concessionários, dos artigos 51º, nº1 do Decreto-Lei 129/84). Poder-se-á afirmar que era uma via bastante mais restrita, embora estivesse imune às condições estabelecidas para a via anterior.

Este enquadramento jurisprudencial permite uma visão abrangente do desenvolvimento jurídico em sede de impugnação de normas administrativas. É visível a ideia de dualidade de meios processuais até 1985 – meio processual genérico e meio processual especial – e ainda numa análise aos antecedentes históricos constitucionais, importa referir a reforma de 1997, na qual o artigo 268º, nº5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), aditou o direito de impugnação judicial directa de normas administrativas com eficácia externa, quando estas prejudiquem direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares.
Na reforma do Contencioso Administrativo de 2004, uma das suas principais orientações prendeu-se com o estabelecimento de um regime uniforme, estabelecendo-se como padrão, o meio processual genérico. Esta uniformização do contencioso regulamentar, no entender do Professor Vasco Pereira da Silva, violava o direito fundamental de impugnação de normas jurídicas lesivas dos direitos particulares – o supracitado artigo 268º/5 da Constituição da República Portuguesa – por referir, expressamente, na letra do artigo 73º/2 do CPTA, que em casos de declaração de ilegalidade, quando se trate de uma norma jurídica exequível, esta apenas produz efeitos no caso concreto, o que no seu entender, tratar-se-ia de uma restrição afecta à extensão e alcance do conteúdo essencial do direito.
Segundo o Professor Vieira de Andrade, a reforma do Contencioso Administrativo de 2004, permitiu delinear duas modalidades de impugnação de normas, uma vez que se decalcam dois tipos de pedidos, o (1) pedido de declaração com força obrigatória geral e o (2) pedido de declaração de ilegalidade no caso concreto.
            Importa frisar que aquando da reforma de 2004, previu-se que se efectuasse a revisão do CPTA decorridos três anos da sua entrada em vigor. Tal não sucedeu, já tinham decorrido mais de dez anos e urgia a necessidade de modernização da justiça administrativa portuguesa, de forma a poder adaptar-se igualmente ao novo Código de Processo Civil (CPC). A recente reforma de 2015, que irei abordar de seguida, coloca um fim à divisão clássica entre meios processuais, relativos à acção administrativa genérica e especial.

1.   O Novo Regime de Impugnação de Normas Administrativas

A impugnação de normas no contencioso administrativo tem por objecto a declaração da ilegalidade de normas administrativas com fundamento em vícios próprios ou decorrente da invalidade de actos praticados no âmbito do procedimento de aprovação (artigo 72º/1 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, vulgo, CPTA). Nestes casos o lesado obterá o reconhecimento, com força obrigatória geral, de que a norma em questão é comprovadamente ilegal. Este regime não sofreu qualquer alteração com a introdução do novo Código de Processo dos Tribunais Administrativos, uma vez que o legislador manteve as duas modalidades de impugnação de norma. Refiro-me à impugnação de normas com força obrigatória geral e à impugnação de normas sem força obrigatória geral.

Tem legitimidade para impugnar normas administrativas qualquer interessado directamente prejudicado pela vigência da norma ou que possa previsivelmente vir a sê-lo num momento próximo, independentemente da prática de acto concreto de aplicação (artigo 73º/1 do CPTA), ao contrário do que referia a disposição anterior que apenas atribuía legitimidade a qualquer interessado nos casos em que a aplicação da norma tivesse sido previamente recusada, em qualquer tribunal, em três casos concretos. É igualmente adicionado à letra do texto a legitimidade dos presidentes de órgãos colegiais poderem impugnar normas administrativas, desde que estas tenham sido emitidas pelos órgãos respectivos. É ainda atribuída, tal como já sucedia anteriormente, legitimidade ao Ministério Público – enquanto titular da acção pública administrativa - e outras pessoas e entidades – enquanto titulares do direito procedimental de acção popular -  nos termos do artigo 9º, nº 2, para impugnar normas administrativas.
É também adicionado o Ministério Público no artigo 73º, nº 3 nos pedidos de impugnação da norma administrativa, nos casos em que os efeitos da norma não se produzam imediatamente. É um acrescento que não tinha sido previsto no anterior artigo 73º, nº2.
Interessa ainda referir no âmbito dos pressupostos de impugnação das normas administrativas, que quando o legislador refere como “norma imediatamente operativa” no artigo 73º do CPTA, está a referir-se em concreto às normas com eficácia externa (artigo 135º do Código do Procedimento Administrativo).
Relativamente à existência de prazo para a declaração de ilegalidade, esta é uma novidade no actual artigo 74º, nº 2 do CPTA em relação ao antigo artigo 74º, que dispunha na sua anterior redacção que o pedido de declaração podia ser realizado a qualquer momento. É, porém, pouco preciso, a assunção de que no anterior regime não existia qualquer restrição temporal ao particular que desejasse intentar determinada acção. Importa recordar que no referido regime jurídico era necessária a existência de três casos de desaplicação da norma para que a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral pudesse ser intentada por quem fosse prejudicado pela actuação da norma ou pudesse previsivelmente, vir a sê-lo.
Foi aditado o número 2 ao artigo 74º do CPTA, que refere o seguinte: “a declaração de ilegalidade com fundamento em ilegalidade formal ou procedimental da qual não resulte inconstitucionalidade só pode ser pedida no prazo de seis meses”. A introdução do prazo máximo de seis meses a contar desde a data da publicação do diploma regulamentar não se aplica aos casos de carência absoluta de forma legal, nem tão pouco aos casos de preterição de consulta pública exigida por lei.
Em sede dos efeitos da declaração de ilegalidade, o legislador foi bastante rigoroso ao aditar o número 5 ao artigo 76º, reforçando o efeito de repristinação das normas revogadas – efeito que se encontrava mencionado no antigo número 1 – explicitando que se encontram excluídas deste efeito repristinatório as normas ilegais ou que tenham deixado de vigorar por outro motivo.
O actual artigo número 1 excepciona os casos de ilegalidade superveniente, e foi igualmente adicionado o número 3, que salvaguarda a eliminação dos efeitos lesivos causados na esfera jurídica do autor nos casos em que se estabelece a produção de efeitos apenas a partir da data do trânsito em julgado da sentença. Mantém-se, desta forma, a regra geral de que os efeitos se produzem de uma forma retroactiva (artigo 76º, nº1 do CPTA) – eficácia ex tunc – salvo os casos em que é conferido ao tribunal o poder de determinar que os efeitos apenas se produzam para o futuro (artigo 76º, nº2 do CPTA) – eficácia ex nunc – quando se justifique pelo conjunto de razões enumeradas no próprio artigo.
No que diz respeito à impugnação sem força obrigatória geral, que se encontra prevista no artigo 73º, nº2 do CPTA e apesar dos efeitos não se encontrarem propriamente previstos na lei, parece-me que a actual posição doutrinária de que se produzem de uma forma retroactiva e igualmente repristinatória, é a que fará mais sentido.


Abordadas as alterações ao CPTA no âmbito da impugnação de normas administrativas, parece-me notória a simplificação e clarificação do regime actual. Ainda assim, refira-se que o motivo das criticas do Professor Vasco Pereira da Silva relativas à modalidade de impugnação sem força obrigatória geral se mantenha inalterável, ao produzir efeitos apenas no caso concreto, o que na sua óptica, é ilógico.

Pedro Azevedo Rocha,
nº 22116.


Bibliografia:

ALMEIDA, Mário Aroso de - Manual de Processo Administrativo (2010);
ANDRADE, José Carlos Vieira de - A justiça Administrativa (2015);
SILVA, Vasco Pereira da - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise (2009);



sábado, 21 de novembro de 2015

Ação Administrativa - O Modelo Monista do novo CPTA

No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 100/2015, de 19 de agosto, o Decreto-Lei n.º 214-G/2015 veio alterar o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código dos Contratos Públicos, o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, a Lei de Participação Procedimental e de Ação Popular, o Regime Jurídico da Tutela Administrativa, a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos e a Lei de Acesso à Informação sobre Ambiente. Em concreto, importa-nos focar nas alterações desencadeadas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (em diante CPTA).

Estabelecia-se no anterior CPTA que qualquer ação instaurada nos Tribunais Administrativos teria de adotar uma das formas legalmente previstas. De acordo com o antigo artigo 37º e seguintes tínhamos o elenco da ação administrativa comum, que se caraterizava por ser residual em relação à ação administrativa especial prevista nos artigos 46º e seguintes do anterior CPTA e que estabeleciam os meios processuais a que recorriam maioritariamente os sujeitos que quisessem dirigir-se aos Tribunais Administrativos. Com isto, pode entender-se que o código anterior “optou, em 2002, por um modelo dualista” que assentava a sua distinção, segundo o entendimento maioritário da doutrina, “no facto de se estar, ou não, perante a prática ou omissão de manifestações de poderes de autoridade por parte da Administração”[1]. A jurisprudência partilhava desta opinião, o que ficou expresso em acórdãos do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 12 de julho de 2012, Proc. nº 8510/12, e de 6 de fevereiro de 2014, Proc. nº 10575/13.

Para J.M. Sérvulo Correia a existência de um modelo dualista seria a opção mais acertada uma vez que permitia fazer a distinção entre ações em que estivessem em causa pretensões contra atos administrativos praticados ou omitidos, e uma ação administrativa de plena jurisdição aplicável aos casos que não preenchiam as situações previstas para a ação administrativa especial.

Porém, grande parte da doutrina insurgiu-se contra este modelo dualista. O Professor Vasco Pereira da Silva critica-o uma vez que a separação dos dois tipos de ação administrativa se devia “pré-conceitos” de natureza substantiva, não tendo por base “verdadeiras razões de natureza processual”[2]. Além disto, o facto de por a ação especial ser aquela a que mais se recorria, o Professor considerou que estávamos já num ponto em que existia uma espécie de inversão terminológica, sendo a ação especial a “mais comum”.

Com isto, o preâmbulo do DL de revisão justifica a necessidade de alterações pela “relativa incoerência” do regime dualista (demonstrada pela excessiva influência do Código de Processo Civil nos aspetos fundamentais do anterior CPTA) e dos problemas resultantes da delimitação entre ação administrativa especial e ação administrativa comum visto que em muitos casos, especialmente os de cumulação entre ações de um tipo e do outro, existiam casos de evidente confusão entre estes o que se traduzia numa “reduzida praticabilidade” do modelo dualista. Concluiu-se que um modelo semelhante ao do CPC tendo em conta as especifidades próprias do processo administrativo seria suficiente para dar resposta a todos os processos declarativos, “reconduzindo-se todos os processos não urgentes do contencioso administrativo a uma única forma de processo, à qual é dada a designação de «ação administrativa»”.

O novo regime materializa-se na separação da ação administrativa (Título II) dos processos urgentes (Título III) e pelas normas processuais gerais previstas, para o CPC, aplicáveis subsidiariamente ao contencioso administrativo. O Título II que identifica a ação administrativa começa desde logo a designar o tipo de objetos processuais (artigo 37º do novo CPTA) que podem constituir causa para instaurar uma ação no contencioso administrativo. Por esse motivo, o elenco destas vem previsto nas alíneas do referido artigo.

É também importante a referência ao preâmbulo da revisão do CPTA que destaca que “esta nova forma de processo é submetida ao regime que, até aqui, correspondia à ação administrativa especial, mas com as profundas alterações que decorrem da sua harmonização com o novo regime do CPC” e também da revisão ao Código de Procedimento Administrativo (CPA). A conclusão terá de passar pela observação cuidada das alíneas do artigo 37º/1 que nos indicia a predominância do anterior regime previsto para a ação administrativa especial e as influências em termos processuais do novo CPC de 2013 ao longo de todo o CPTA novo.

Porém, algumas críticas também são apontadas a esta nova solução. “Não só na delimitação do âmbito e natureza deste tipo de ação única, mas também e em particular, no Capítulo III, do Título II (Marcha do processo    artigos 78º e seguintes), dado que a ação administrativa abrange os litígios definidos no artigo 37º, surgindo dúvidas se este capítulo III (ou pelo menos alguns dos artigos nele contidos) se aplica a todos esses litígios e, em caso afirmativo, se tal é a melhor solução. Com efeito, os normativos em causa correspondem, em grande medida, a um decalque das normas que atualmente regulam a ação administrativa especial, as quais não serão as adequadas a regular os litígios (ou pelo menos grande parte deles) que atualmente se subsumem na ação administrativa comum.”[3]

Não se espera que se chegue a um cenário idílico, elogiado por todos, até porque a crítica é passo essencial para a evolução e adaptação a novas realidades. No entanto, parece-me que a razão está com o Professor Vasco Pereira da Silva e restante doutrina que apoia a alteração do CPTA e a adoção de um modelo monista em rotura com o modelo anterior. A criação de uma “ação administrativa” que unifica todos os meios processuais não urgentes num único tipo de ação facilita a esquematização mental de separação entre os vários possíveis objetos do contencioso administrativo assim como - e esta parece-me ser a conquista principal - reduzir o risco de proposituras inadequadas face às reais pretensões que se pretendem atingir. O anterior modelo suscitava, em algumas situações, dúvidas sobre o regime aplicável, principalmente em situações de cumulação de pedidos de ação administrativa comum com pedidos de ação administrativa especial, levando invariavelmente a casos em que a primeira era como que “consumida” pela segunda originando, inevitavelmente, confusões sobre as restantes disposições aplicáveis.

Como tal, considero que a revisão do CPTA e a adoção do modelo monista surgem mais como solução do que como problema para o contencioso administrativo e demonstram, na minha opinião, um verdadeiro avanço no sistema processual administrativo português.




[1] Ana Sofia Firmino em “O Anteprojeto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate”, Almedina
[2] Vasco Pereira da Silva em “ O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2ª edição, Almedina
[3] Parecer do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais – Projeto de revisão do Código do Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais 


Tiago Fernandes
22070

terça-feira, 17 de novembro de 2015

As novidades no âmbito do contencioso pré-contratual urgente – art.100º do CPTA

Cumpre-me, no presente trabalho, analisar o âmbito do contencioso pré-contratual, tal como fixado no artigo 100.º da reforma atual. Vejamos em que termos procedeu o legislador ao aperfeiçoamento da aplicação do Código neste domínio.

Face do desuso em que caiu a expressão “impugnações urgentes” para designar os objetos destas formas processuais, o legislador procedeu à substituição da denominação que configurava no Capítulo I do Título III do Código para “ação administrativa urgente” ao invés das “impugnações urgentes”.

Coerentemente, caíram formulações normativas patentemente redutoras, inclusive a do n.º 1 do artigo 100.º do Código, que apenas dispunha quanto à possibilidade de “impugnação de atos administrativos” relativos à formação dos tipos contratuais aí elencados. Esta foi, substituída por uma formulação mais inclusiva, a saber “ações de impugnação ou de condenação à prática de atos administrativos”. Como a prática jurisprudencial revelou, os objetos dos processos urgentes extravasam, em muito, os de uma mera impugnabilidade. Questionou-se a possibilidade de o objeto do processo de contencioso pré-contratual urgente integrar pretensões diferentes das de cariz estritamente impugnatório, particularmente, as pretensões relativas à condenação à prática de ato administrativo (pré-contratual) devido. Veio, pois, a entender-se que, não obstante a ausência de uma resposta normativa expressa, se deve considerar que nada obsta à respetiva admissibilidade, assumindo-se como uma decorrência do modelo atual da justiça administrativo. Não, restam, pois, dúvidas quanto à recusa em confinar o objeto destes meios processuais urgentes a pretensões impugnatórias como anteriormente.

Atentando-se ao preâmbulo do Projeto de Decreto-Lei, quanto aos domínios em que as alterações introduzidas no regime do CPTA revestem maior relevo, que “[o] âmbito de aplicação [do contencioso pré-contratual urgente, regulado nos artigos 100.º e seguintes]é, desde logo, alargado, de modo a abranger o contencioso relativo à formação de todos os contratos compreendidos pelo âmbito de aplicação das diretivas da União Europeia em matéria de contratação pública e, por conseguinte, do Código dos Contratos Públicos”. Destas considerações é possível retirar, logo, duas inferências: o dito alargamento é, por um lado, inteiramente funcionalizado ao âmbito de aplicação das aludidas diretivas da União Europeia e ao CCP.

É de frisar que foi aprovada a Directiva 2014/23/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Fevereiro de 2014, relativa à adjudicação de contratos de concessão, a qual tem como objeto e âmbito de aplicação, nos termos do respetivo artigo 1.º, o estabelecimento de “regras aplicáveis aos procedimentos de contratação levados a cabo por autoridades e entidades adjudicantes por meio de uma concessão, cujo valor estimado não seja inferior aos limiares definidos no artigo 8.º”. Acresce que a noção de concessão abrange, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 5.º do mesmo diploma, quer a concessão de obras públicas, quer a concessão de serviços, tal como definidas nas alíneas a) e b) do mesmo preceito, em que a tónica se coloca, como se sabe, no direito de exploração da obra ou dos serviços que constituem o objeto destes contratos.

Com a citada Directiva 2014/23/UE põe-se, então, termo à exclusão do contrato de concessão de serviços públicos do âmbito das diretivas comunitárias relativas aos contratos públicos. À luz do exposto, compreende-se, pois, que a lei tenha tido em conta esta inovação europeia, incluindo no âmbito do contencioso pré-contratual urgente o contrato de concessão de serviços públicos (no nº1 do artigo 100º atual). Por outro lado, aproveitou o legislador para reformular a redação do n.º 1 do artigo 100.º do Código, substituindo o segmento normativo anteriormente vigente relativo ao elenco de contratos “de prestação de serviços e de fornecimento de bens”, pela referência aos contratos de “aquisição ou locação de bens móveis e de aquisição de serviços”, conforme a designação legal dos citados tipos contratuais introduzida pelo CCP.

É patente que, à luz desta reforma, ficou por concretizar a recondução de todos os contratos públicos para a jurisdição administrativa. Importa, assim, assinalar, a insuficiência da solução legal (até porque o CCP uniformizou as regras de procedimento pré-contratual) vertida na redação do n.º 1 do artigo 100.º decorrente da reforma.

Do exposto resulta que, atendendo à nova formulação do artigo 100.º permanecem excluídos deste meio processual urgente os litígios emergentes de procedimentos de formação de quaisquer outros contratos que não os enunciados nesta norma, dos quais se destacam, entre tantos outros, os contratos de concessão de uso privativo, de exploração de bens do domínio público e o contrato de sociedade (a que se referem os artigos 16º,nº2, al.f) e 31º, nº3, do CCP). Também não se aplica aos litígios concorrenciais não contratuais, pois, não abrange os atos administrativos substitutivos dos contratos públicos (art.1º, nº3, do CCP).
Teremos, portanto, um regime duplo: a ação administrativa urgente para a maioria dos contratos públicos e a ação administrativa normal os restantes contratos públicos (ver os novos artigos 35º e 37º a 96º do CPTA).

Ainda no nº1 deste artigo, como já referi, veio-se admitir expressamente na norma a “condenação à prática de atos administrativos” (como anteriormente se já entendia caber no seu âmbito).
O novo nº2 (que substitui o anterior nº3) dispõe que “são considerados atos administrativos os atos praticados por quaisquer entidades adjudicantes (ver artigo 2º do CCP) ao abrigo de regras de contratação pública” (ver os artigos 51º, nº1 e nº3 do novo CPTA). Este conceito legal é próximo do conceito presente no novo artigo 148º do CPA.


Trabalho realizado por: Ana Mafalda Lameira
Bibliografia:
MATOS, SARA - “Do âmbito da ação administrativa urgente”, in e-pública, Revista Eletrónica de Direito Público, nº2, Junho de 2014

GOUVEIA, PAULO – “A nova ação administrativa de contencioso pré-contratual”, Revista julgar, nº26, 2015

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa
Campus de Justiça
Av. D. João II, n.º1.08.01 – Edifício G – 6.ºpiso
1990-097 Lisboa

Exmo. Senhor Juiz de Direito,

Associação dos Tuk Tuk Ecológicos, com sede na Rua dos Desamparados, n.º 7, 1975-025, Lisboa, com o NIPC 999 888 777, ao abrigo dos arts. 9.º/2 e 55.º/f) CPTA, vem propor:

Ação administrativa de impugnação do regulamento administrativo, ao abrigo do art. 37º/1 d) CPTA bem como os atos que dele decorrem e cumulativamente pedir uma indemnização por lucros cessantes.

Contra,

Município de Capital, com sede na Praça do Município, 1149-014, Lisboa.

E, na qualidade de contrainteressados a Associação de Taxistas de Capital (vide Anexo II - Requerimento à Administração com base no art. 78º-A/1 CPTA).

O que o faz nos termos e com os fundamentos seguintes:

A – Introdução

1.º
A Autora é a Associação dos Tuk Tuk Ecológicos que se dedica à defesa dos interesses dos seus associados, tendo legitimidade ativa nos termos do art. 9.º/2 CPTA enquanto associação defensora de interesses em causa.

2.º
O Réu, na pessoa do Presidente da Câmara Municipal de Capital, Joaquim Substituto, proferiu um despacho vedando a circulação a triciclos ou ciclomotores afetos à atividade de animação turística em zonas de grande afluência, como o Alto Bairro, Alfombra e o Castelinho.
3.º
São chamados ainda à causa, na qualidade de contrainteressados, a Associação de Taxistas de Capital, na pessoa do seu Presidente, Soldadinho de Chumbo.

4.º
Por considerarmos estarem em causa diversas ilegalidades A. vem impugnar judicialmente o regulamento administrativo, bem como os atos administrativos praticados ao abrigo do mesmo.                                                                       
5.º
A. vem igualmente pedir uma indemnização por lucros cessantes em virtude de, desde a entrada em vigor do regulamento (dia 6 de novembro de 2015), os Tuk Tuk ecológicos terem visto a sua regular atividade altamente condicionada, através de alegações de facto e de direito que se seguem nesta petição:

B – Dos Factos
6.º
A A. não foi consultada antes do proferimento do despacho, ainda que o tenham sido os presidentes de freguesias do local, diversos moradores, alguns empresários e a Associação dos Taxistas de Capital.

7.º
Os Tuk Tuk representados, que circulam na cidade, são triciclos elétricos com patente registada no INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial).

8.º
Além de serem elétricos e não motorizados, os Tuk Tuk não trazem qualquer das desvantagens referidas, nomeadamente, ao nível da poluição sonora e atmosférica, sendo verdade que não danificam o património das zonas históricas vedadas (vide Anexo IV – Ficha Técnica dos Produtos dos Tuk Tuk e Anexo V - Parecer da Quercos, na pessoa de Alfredo Verdana).

                                                                        9.º
É de relembrar que a Câmara de Capital emitiu ainda este ano um despacho vedando a circulação de veículos anteriores ao ano de 2000 em algumas zonas históricas, tendo esta limitação como ratio legis a proteção e conservação do património.
                                               
10.º
 Os Tuk Tuk ecológicos constituem um meio de dinamização das áreas em análise, motivando o interesse dos turistas no património cultural da cidade.

11.º
A atratividade destas áreas históricas, agora vedadas, será prejudicada pelas dificuldades acrescidas de acesso dos turistas.

12.º
Os motoristas dos Tuk Tuk ecológicos são profissionais altamente qualificados em questões históricas e fluentes em diversas línguas, sendo deste modo prestado um serviço especializado e único no âmbito da oferta turística da capital.

13.º
As áreas vedadas têm ruas tendencialmente estreitas, que beneficiavam com os Tuk Tuk, na medida em que estes são meios de transporte de pequena dimensão, não condicionando assim o tráfego nas áreas históricas consideradas. 

14.º
Outros meios de transporte utilizados pelos turistas nas áreas agora vedadas contribuem para a degradação do património cultural da cidade, os Tuk Tuk ecológicos, pelas suas características, nunca iriam danificar o tão apreciado património da capital.


15.º
Os Tuk Tuk elétricos representam uma das formas menos poluentes de deslocação na cidade, não sendo a energia utilizada de origem fóssil.

16.º
A iniciativa privada no âmbito do turismo da cidade irá diminuir consideravelmente com o receio da perda de investimento como aqui sucede. (vide Anexo VI – Testemunho de Paquito Cruz, um comerciante no bairro do Castelinho).

17.º
Os elevados custos de aquisição dos Tuk Tuk elétricos são compensados pelos diminutos custos de manutenção comparativamente aos demais triciclos, mas em virtude do despacho proferido estão os seus proprietários a sofrer consideráveis perdas.

18.º
A existência de Tuk Tuk, que colmata o difícil acesso às zonas mais procuradas por turistas na capital, vai aproximá-la de outros grandes polos turísticos europeus.

19.º
Não necessitam de o mesmo tipo de licenciamento do que os táxis por não se tratar de um meio de transporte de passageiros, sendo antes um triciclo dedicado exclusivamente à atividade de animação turística.

20.º
Não representam qualquer ameaça para os taxistas na medida em que os Tuk Tuk elétricos têm uma autonomia limitada e o carregamento das suas baterias não é rápido, não sendo vantajoso utilizá-los fora do âmbito estritamente turístico, nomeadamente em longas viagens.

21.º
A proibição de acesso a algumas zonas da cidade foi feita sem nenhuma anterior tentativa de regulamentação da atividade. Não existem, nem foram criados, locais próprios para a carga e descarga de passageiros, nem para o estacionamento dos Tuk Tuk. Não foi realizado também qualquer esforço no sentido de criar um horário dentro do qual o exercício da atividade deve ser permitido, diminuindo deste modo o incómodo para os moradores das áreas em causa. Tudo isto apesar de a A. sempre se ter disponibilizado para iniciar negociações.

22.º
O ruído que os Tuk Tuk produzem é residual em comparação com os demais meios de transporte que circulam nas áreas consideradas (vide Anexo VII – Testemunho de Carlos Carminho, um morador do bairro de Alfombra).

23.º
Não foram considerados outros meios de regulamentação da atividade que não a proibição absoluta da circulação de triciclos ou ciclomotores afetos à atividade turística nas zonas consideradas.

24.º
Em razão da proibição, as entidades associadas, na globalidade, serão obrigadas a proceder a mais de cento e quinze despedimentos (vide Anexo VIII – Testemunho de João Papaia Verde, o Presidente da Associação de Tuk Tuk Ecológicos).

25.º
A importância sazonal da atividade costuma justificar a contratação de duzentos profissionais em épocas de afluência turística. Estas contratações também deixarão de ocorrer (vide Anexo IX – Registo de Membros da Associação de Tuk Tuk Ecológicos).

C – Do Direito
                                                                        26.º
Compete à Câmara Municipal emitir despachos de acordo com o art. 33º/1/ee) LAL, na parte em que se refere à gestão da circulação, dentro da sua circunscrição territorial, faltando ao Presidente competência para, por si só, emitir o despacho que culminou nas proibições nesta petição impugnadas.

27.º
O art. 6º CPA dispõe que decorre das prerrogativas da Administração Pública que as suas condutas se devem pautar pelo princípio da igualdade.

28.º
No regulamento em questão é possível observar um desrespeito a este mesmo princípio já que é vedada a circulação apenas a triciclos ou ciclomotores afetos à atividade turística, sendo a única queixa dos moradores afetados o ruído e a poluição, acrescendo a este facto que há veículos muito mais poluentes e ruidosos do que os mencionados.
29.º
Sendo verdade que as zonas do Alto Bairro, Alfombra e Castelinho são as de maior tráfego turístico, sendo vedado o acesso de Tuk Tuk podemos afirmar que há um manifesto desrespeito pelos princípios da justiça e da razoabilidade, espelhados no art. 8º CPA.
30.º
É verosímil que os Tuk Tuk são triciclos sendo deste modo parte diretamente interessada e afetada pela emissão do regulamento em causa, ainda mais, nenhuma das associações que os representam foram contatadas pela Câmara de Capital. Assim, consideramos que há uma grave violação de diversos princípios orientadores da atividade administrativa, nomeadamente o princípio da participação, dispondo o art. 12º CPA que deve a Administração “assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objeto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes digam respeito, designadamente através da respetiva audiência”.

31.º
Adicionalmente, nem a Associação de Tuk Tuk Ecológicos, nem os empresários que gerem estas empresas, nem mesmo os próprios trabalhadores foram jamais informados do facto de estar a ser elaborado um regulamento que os afetaria de modo direto e imediato, restringindo de tal modo a sua atividade.

32.º
Consideramos, assim, que foi preterida a audiência dos interessados, prevista no art. 100º CPA, sendo que este artigo dispõe que “tratando[-se] de regulamento que afete de modo direto e imediato, direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, o responsável pela direção do procedimento submete o projeto de regulamento por prazo razoável […] a audiência dos interessados que como tal se tenham constituído no procedimento”.
33.º
 Não há ainda lugar à dispensa de audiência dos interessados com fundamento no art. 124º CPA, pois deve atender-se ao facto de as referidas associações sempre se terem demonstrado dispostas a negociar a regulamentação da sua atividade, nunca tendo obtido resposta.
34.º
Atendendo ainda ao art. 124º/2 CPA era necessário a referência expressa à dispensa, algo que não sucedeu.

35.º
Relativamente ao regulamento em si, este não respeita o art. 136º/2 CPTA, ou seja, não refere a lei que visa regulamentar, ou, no caso de regulamento independente, a habilitação legal que permite a sua vigência.

36.º
Com fundamento no artigo citado entendemos que o regulamento está ferido de invalidade (art. 143º/1 CPA) por desrespeito à lei e aos princípios gerais de Direito Administrativo supracitados.

37.º
Relativamente aos atos decorrentes do regulamento, pedimos que estes sejam igualmente invalidados, entendendo-se por atos administrativos coimas, a restrição de acesso às zonas consideradas e outras atuações semelhantes que possam restringir a atividade dos Tuk Tuk.

38.º
Considerando agora a indemnização pedida, em virtude do despacho proferido, devem ser tidos em consideração os lucros cessantes, entendendo-se por lucros cessantes aquilo que os trabalhadores das empresas dos Tuk Tuk ecológicos (sendo os trabalhadores não só os motoristas como os gestores e todos aqueles que sofreram prejuízos consideráveis) deixaram de receber em virtude das proibições citadas.

39.º
Também deve ser tido em conta não só o que deixaram de receber como também todas as marcações perdidas em virtude deste despacho, e ainda a descredibilização da empresa (isto em virtude da proibição, não tendo sido avisados da feitura do regulamento, que afetaria a sua regular atividade, defraudaram as expetativas daqueles com quem contrataram futuras prestações de serviços nas áreas agora restritas).
                    
40.º
Pedimos ainda que seja considerado que o regulamento entrou em vigor dia 6 de novembro de 2015, sexta-feira, não dando margem para que as empresas pudessem considerar alguma alternativa, relembrando-se mais uma vez que nunca foram avisados ou tiveram qualquer indício de que a sua atividade iria sofrer proibições desta grandeza. Acrescente-se ainda que até ao trânsito em julgado da decisão os trabalhadores não poderão realizar a sua atividade com normalidade.

Nestes termos, nos melhores do direito
Requeremos de v. Exª
Que a ação proposta seja julgada procedente
E em consequência,
a)    Que seja declarado o presente regulamento nulo, com fundamento no art. 143º/1 CPA, bem como os atos dele decorrentes; e
b)    Cumulativamente, seja determinada uma indemnização pelos lucros cessantes.

Valor da causa: € 32 000, 00 (Trinta e dois mil euros).
Forma de Processo: Impugnação de normas nos termos dos arts. 37º/1 d) e 72º/1 CPTA.
Junta: procuração forense, DUC e comprovativo de pagamento, 9 (nove) documentos.
Prova documental: Anexos I a IX.
Prova testemunhal:
- João Papaia Verde, Presidente da Associação de Tuk Tuk Ecológicos, residente na Avenida da Paz Verde, n.º3, 1344-655 Lisboa.
- Alfredo Verdana, Presidente da Direção da Quercus, residente na Rua do Mar à Perna, n.º0, 1345-566 Lisboa.
- Carlos Carminho, morador do bairro de Alfombra, residente na Rua da Tumba, n.º5, 1455-658 Lisboa.

Lisboa, 16 de novembro de 2015
Os Advogados



NOTA: No correio electrónico da subturma encontram a petição inicial em si e os anexos que aqui não reproduzimos.